Morrisey,
vocalista da extinta banda inglesa dos anos 80 The Smiths, esteve em turnê recente
no Brasil. As letras das músicas são um retrato vivo dos anseios de toda uma
geração, de uma época em que se compreendeu, talvez mais que em outras, a
mistura da felicidade com a tristeza.
Foi em uma
das inúmeras entrevistas do Morrissey que soube da obra de Oscar Wilde -
escritor irlandês do século 19 - quem mais li desde minha adolescência, o que
me provou a interação entre as artes: referências literárias a partir da
música. E percebi o casamento deles, um sacramento oculto, elo de décadas que
ainda faz sentido a um tanto de pessoas. O exercício da leitura da ironia, do
perfume da neblina quando nada se enxerga e o “significado da dor e de toda sua
beleza”.
Então surgiu
o hit “The boy with the thorn in his side”,
um olhar sobre as próprias dores fazendo-as parecer cândidas ao tratar com a
franqueza de um adolescente o desassossego que pode ser o de qualquer um. E,
assim, escamoteava o óbvio, num ritmo de aparente ingenuidade que envolvia os
jovens da época, pois vanguarda.
As letras de
Morrissey ainda conferem sentido a todos os garotos atormentados na ânsia por
si mesmo. Desta forma, continuou o canto de Wilde sem assumir a viuvez. Parceiro
sem nostalgia, pois o escritor está ao seu lado conjugado no tempo presente.
Ao passo que
Oscar Wilde desfilava altivo uma elegante e refinada ironia como ninguém, sem
precisar se valer de destilar veneno sobre os abutres vorazes. Comia-os pelas
bordas com serenidade, como quem dispõe de tempo a degustar finas iguarias.
Transferiu, assim, à escrita sua capacidade de excelente orador que era, como
se suas letras fossem extensão de sua fala, numa tão rica dramaturgia de vida
que acabou por fazê-lo sujeito na transcendência de si mesmo: um ator que finge
ser insipiente à própria persona, dando-lhe, desta forma, acréscimo. Não
passava de um autêntico Fantasma de
Canterville ao almejar o impacto enquanto fulgurava sedução.
Por outro
lado, ampliava o significado de suas palavras; o não dito, porém escrito, o
definiu de tal forma que se reinventou solitariamente. O que escrevia era sempre
a verdade fazendo-se passar por uma incerteza que pretendia se passar como segunda
verdade para ocultar ser única. Eis sua maior ruína, e seu melhor mérito: tornar-se
francamente palpável a quem o decifrasse. Porém a revelação seria possível apenas
como fruto da elaboração ativa do leitor, seja este no papel de censor ou
cúmplice. Permitia esse maniqueísmo como resultado, e se valia dele ao envolver
com a argúcia da áspide a bailar. Assim, despertou curiosidade sobre sua vida,
tão ou mais do que por sua obra. E, definitivamente, deixou sua assinatura: ninguém
imitou Oscar Wilde tão bem como ele mesmo.
O escritor
não usava hieróglifos. No cenário - entre carruagens, leques, fraques e
vestidos longos - tecia pontos entre os fios, permitindo um descer redondo que
envolvia o leitor da época, fazendo parecer longe o que estava a centímetros; e
enfeitiça ainda hoje quem se deixa cair em suas guirlandas literárias, fazendo
parecer próximo o que não se enxerga sem lentes de aumento.
Morrissey acenou
aos quatro cantos sobre o pós-modernismo, profetizou que pouco ou nada novo
seria criado depois dos anos 80. Confesso que penso o mesmo, mas ainda tenho
esperança no encanto de um novo garoto atormentado a parecer brincar com a vida
enquanto exalta a morte, e menosprezar a morte como condição de vida. “Se eu
morrer, morri” – afirma Morrissey; enquanto Wilde está mais vivo do que nunca.
- Ana Cecília Romeu -