quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Morrissey casou-se com Wilde

   
Não encontrado o registro de autoria da imagem.
   
   Morrisey, vocalista da extinta banda inglesa dos anos 80 The Smiths, esteve em turnê recente no Brasil. As letras das músicas são um retrato vivo dos anseios de toda uma geração, de uma época em que se compreendeu, talvez mais que em outras, a mistura da felicidade com a tristeza.
   Foi em uma das inúmeras entrevistas do Morrissey que soube da obra de Oscar Wilde - escritor irlandês do século 19 - quem mais li desde minha adolescência, o que me provou a interação entre as artes: referências literárias a partir da música. E percebi o casamento deles, um sacramento oculto, elo de décadas que ainda faz sentido a um tanto de pessoas. O exercício da leitura da ironia, do perfume da neblina quando nada se enxerga e o “significado da dor e de toda sua beleza”.
   Então surgiu o hit “The boy with the thorn in his side”, um olhar sobre as próprias dores fazendo-as parecer cândidas ao tratar com a franqueza de um adolescente o desassossego que pode ser o de qualquer um. E, assim, escamoteava o óbvio, num ritmo de aparente ingenuidade que envolvia os jovens da época, pois vanguarda.   
   As letras de Morrissey ainda conferem sentido a todos os garotos atormentados na ânsia por si mesmo. Desta forma, continuou o canto de Wilde sem assumir a viuvez. Parceiro sem nostalgia, pois o escritor está ao seu lado conjugado no tempo presente.
   Ao passo que Oscar Wilde desfilava altivo uma elegante e refinada ironia como ninguém, sem precisar se valer de destilar veneno sobre os abutres vorazes. Comia-os pelas bordas com serenidade, como quem dispõe de tempo a degustar finas iguarias. Transferiu, assim, à escrita sua capacidade de excelente orador que era, como se suas letras fossem extensão de sua fala, numa tão rica dramaturgia de vida que acabou por fazê-lo sujeito na transcendência de si mesmo: um ator que finge ser insipiente à própria persona, dando-lhe, desta forma, acréscimo. Não passava de um autêntico Fantasma de Canterville ao almejar o impacto enquanto fulgurava sedução.
   Por outro lado, ampliava o significado de suas palavras; o não dito, porém escrito, o definiu de tal forma que se reinventou solitariamente. O que escrevia era sempre a verdade fazendo-se passar por uma incerteza que pretendia se passar como segunda verdade para ocultar ser única. Eis sua maior ruína, e seu melhor mérito: tornar-se francamente palpável a quem o decifrasse. Porém a revelação seria possível apenas como fruto da elaboração ativa do leitor, seja este no papel de censor ou cúmplice. Permitia esse maniqueísmo como resultado, e se valia dele ao envolver com a argúcia da áspide a bailar. Assim, despertou curiosidade sobre sua vida, tão ou mais do que por sua obra. E, definitivamente, deixou sua assinatura: ninguém imitou Oscar Wilde tão bem como ele mesmo.
   O escritor não usava hieróglifos. No cenário - entre carruagens, leques, fraques e vestidos longos - tecia pontos entre os fios, permitindo um descer redondo que envolvia o leitor da época, fazendo parecer longe o que estava a centímetros; e enfeitiça ainda hoje quem se deixa cair em suas guirlandas literárias, fazendo parecer próximo o que não se enxerga sem lentes de aumento.
   Morrissey acenou aos quatro cantos sobre o pós-modernismo, profetizou que pouco ou nada novo seria criado depois dos anos 80. Confesso que penso o mesmo, mas ainda tenho esperança no encanto de um novo garoto atormentado a parecer brincar com a vida enquanto exalta a morte, e menosprezar a morte como condição de vida. “Se eu morrer, morri” – afirma Morrissey; enquanto Wilde está mais vivo do que nunca. 

- Ana Cecília Romeu -

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Elvis Economiza Gasolina em Cinco Marchas

Primeira foto oficial do livro, ainda na gráfica.


O livro


   Apresento para vocês meu livro de crônicas: 
  Elvis economiza gasolina em cinco marchas.

   Resultado da coletânea de textos de minha autoria publicados em jornais do Brasil desde 2011. 
   Editado pela Evangraf, e distribuído pela Livraria Palmarinca, o livro tem 104 páginas. Conta com prefácio do professor Jaime Guimarães; incipts de Dilso José dos Santos, Joelma Bittencourt, Marcelo Dávila, Adri Aleixo, Isabel Rodrigues, Jaime Guimarães e Jacques Beduhn. Depoimentos de contra-capa de Karina Moraes, Edilson Teixeira, Jorge Pimenta, Adri Aleixo e Jim Carbonera.
   Capa de Luíse Rodrigues da Costa e Ana Cecília Romeu. Revisão de Dione Detanico. Projeto gráfico: Via3 publicações.

   Agradeço muito a todos vocês que acompanham minha trajetória neste blog, e cujo incentivo me fez continuar, tentar e chegar a esta primeira publicação!
  
   Deixo o texto da jornalista Isabel Rodrigues, que compõe a orelha da publicação:

   Elvis economiza gasolina em cinco marchas é uma seleção de crônicas sobre diversos aspectos do cotidiano: as artes, o ser humano, a sociedade, os fatos e as datas.
   Anteriormente publicados em jornais do Brasil, os textos são acessíveis e discorrem sobre várias inquietações pertinentes na atualidade.
   Com o olhar atento sobre o mundo, acontecimentos e relações, a autora tece suas crônicas na “marcha” certa, com a harmonia de quem se inspirou nas músicas do rei do rock, Elvis Presley.
   Assim ela escreve: em alguns momentos destila a leveza da Love me tender, em outros, está mais incisiva como em Suspicious Minds; mas sempre uma escrita fluente e opinativa, que conduz o leitor ao universo pontilhado de otimismo onde transita.
   Elvis economiza gasolina em cinco marchas é uma reflexão sobre o cotidiano proposta em um diálogo franco entre escritora e leitor. Um livro para ser degustado em companhia das músicas do Elvis, ou outras que ajudem nossa imaginação a viajar na leitura.

                                           Isabel Cristina Rodrigues - Jornalista

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Interessados em adquirir o livro com dedicatória e envio por correio, e que mantém contato comigo apenas via blog, por favor, coloquem seu e-mail em comentário que retorno.
Os comentários com e-mail não serão desmoderados, por questão de privacidade. Mas retorno contato, com certeza.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Gente-poesia em três atos

Fotografia de Pedro Costa

A criança é a estrela aparentemente mais frágil de todo o céu,
mas tem o estranho hábito de ser a última a apagar-se.
Ana Cecília Romeu in Estrela Medrosa


I. Janela da Poesia

    pouco, ao dar uma oficina de poesia para meninos de 7 e 8 anos, projeto que chamei de “Janela da Poesia”, e idealizei em função dos personagens das Histórias do Condomínio (obra registrada na Biblioteca Nacional) - agora adaptados ao universo infantil -, desfrutei de momentos maravilhosos. Eu também fui um pouquinho criança brincando de Poesia com eles. Um trabalho que partiu da interpretação gestual à produção escrita livre dentro do tema escolhido e sua apresentação individual na Janela da Poesia (cenário móvel), além da produção de frases com rima e livres, criação do complemento de um desenho e sua pintura. O objetivo foi plenamente alcançado, todos brincaram com a poesia em suas várias formas, com ênfase na escrita. A oficina transcorreu de forma espontânea e fluente, porque as crianças são uma Poesia pronta. As crianças são Poesia em forma de gente!
   E o projeto seguirá.




II. Sobre as crianças, Gaza e todos os mundos

As pessoas não querem a verdade.
Luíse Rodrigues da Costa, de sete anos.

   “As pessoas não querem a verdade” – não sei de onde Luíse tirou essas palavras. Mas assim são as crianças: têm a sabedoria da simplicidade e percebem tudo. Fico pensando porque algumas conseguem ter uma infância plena; ao passo que outras têm carência de tudo. Porque algumas vivem aqui; ou lá... Umas são protegidas; outras à mercê. Mas, principalmente, me questiono: que tipo de infância teve pessoas que hoje matam a infância de outras, que assassinam crianças e demais inocentes? Seja em Gaza, seja em qualquer dos mundos...


III. Estrela medrosa

Às crianças por iluminar tantos dos meus caminhos

   A menina olhou as estrelas e chamou sua mãe. Teve certeza de que piscavam para ela. Falou sobre isso e ganhou um sorriso doce como resposta. A mãe colocou-a na cama e fechou as cortinas do quarto. Deu-lhe beijo de boa noite, tocando na ponta de seu narizinho.

   Hoje sei que elas nunca piscaram para mim. Sua vovó não me avisou sobre isso, mas creio que já o percebia. É que na verdade, as estrelas estão dormindo e acendem a luz por medo do escuro.
   A mulher repetiu o gesto de sua mãe tocando na ponta do narizinho de sua filha depois do beijo de boa noite. Deixou acesa a luz do abajur do criado-mudo.




*Editei esta postagem em forma de crônica que está publicada também nos jornais:

Correio do Povo (Porto Alegre)
NH (Novo Hamburgo)
Gazeta do Sul (Santa Cruz do Sul)
Jornal do Comércio (Porto Alegre). 

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Bolero en El Ateneo Grand Splendid

El Ateneo Grand Splendid - não encontrada referência autoral da imagem


Sempre foste meu espelho,
quero dizer que para me ver, tinha que olhar-te. 
(Julio Cortázar in Bolero - tradução livre)


Buenos Aires, janeiro de um ano qualquer.
   A mulher estava no café da livraria, alojado no palco do que antes fora o teatro homônimo, atestando se aquela de fato era a segunda mais bela loja de livros de todo o mundo. Há o aspecto subjetivo, pensou. Sentou-se à mesa no canto segurando uma antologia de Cortázar, edição de luxo, capa dura em dedos macios.

   Sorvia o café meio-forte, folheando-a aleatoriamente ao deixar que o destino e seus sortilégios elegessem um futuro mais claro, como quem se esquece da bola de cristal, mas ainda crê nos reflexos das bolhas de sabão. Com os aromas do café, de seu perfume preferido e da tinta fresca na parede lateral, abriu à página 44:
   “Fui uma letra de tango
   para tua indiferente melodia.” *

   Depois de ler, a mulher apertou com o indicador direito as duas gotas de café que, indisciplinadas, caíram para fora da xícara. Entre suas digitais, sonhos furtivos, impossibilidades e toda a eternidade, disse-lhe o poeta o que não ousou contestar. Estava ali, na El Ateneo Grand Splendid, onde na plateia há livros sentados e amor na próxima página, na de número quarenta e cinco.

*Julio Cortázar in Siempre empezó a llover


Fito Paéz - Un vestido y un amor

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Uma valsa para Viena

Fotografia de Ana Cecília Romeu

... nunca seremos
o casal perfeito, o cartão postal,
se não formos capazes de aceitar
que somente na aritmética
o dois nasce do um mais um.
(Julio Cortázar in Bolero - tradução livre minha)


Viena, Áustria, num outono qualquer.
   Recordas de quando tentamos dançar uma valsa em Viena, na frente daquele palácio no centro...? Teus pés sambavam de um lado a outro, parecia que usavas os sapatos de Aladim. Algo na ponta dos teus calçados chegava às minhas canelas, ainda que um tanto suave, mas era incômodo. Um blues desafinado, uma descoordenação em sintonia. Sim, fui ao chão, mas me levantaste, recordas?
   Estávamos em Viena na frente daquele palácio no centro, não, nunca vou me lembrar do nome do palácio..., mas sei que escutei a Two uf us do Supertramp, e estou te dizendo isso agora, depois de anos. Há músicas compostas para todas as ocasiões, e essa foi minha canção de queda, do nosso rodopio que não deu volta alguma. Nos acordes, falsetes atrevidos; nas letras, dislexia. Algo do fim para o início interrompeu nosso andamento e não processou senha de permissão, mas prosseguimos. (Des)valsamos os dois, mas sempre estaremos juntos. 



Two of us - Supertramp
 Interpretação de Roger Hodgson, ex-integrante da banda


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Nova publicação no blog a partir de maio.
Abraço imenso a todos!

quarta-feira, 26 de março de 2014

Transitórios em trânsito

Fotografia de Ana Cecília Romeu


Às vezes tudo se ilumina de uma intensa irrealidade
E é como se agora este pobre, este único, este efêmero instante do mundo
Estivesse pintado numa tela,
Sempre...
(Mário Quintana)

   Uma viagem insólita está prestes a acontecer. Grande aventura no melhor estilo surreal, mas de roteiro que não parte de um filme de ficção científica com naves interplanetárias à velocidade da luz. Essa viagem tem início no estacionamento, na garagem, na rua, em qualquer cenário urbano onde esteja o nosso veículo, e começa ao darmos a partida no motor, quando imaginar a próxima cena é uma coisa impossível.
   Capacidade mediúnica é o que precisaríamos no trânsito brasileiro. Nunca se sabe o que o motorista do carro da frente fará, visto que poucos usam a sinalização; e mensurar as ações do sujeito que dirige o carro detrás, visto que poucos usam os freios.
   No trajeto que percorro todos os dias, recordo do grande ídolo Senna e que ele foi, sim, o maior. Muito disso, provavelmente, se deveu a ter dirigido nas ruas e enfrentado o trânsito caótico e sinistro que temos. Tudo, exatamente tudo, parece se atravessar na nossa frente num piscar de olhos ou sem mesmo piscá-los.
   Sempre ouço CD no carro para suavizar um pouco a situação e outro dia escutando Bendita la luz de tu mirada, do grupo Maná, bem na hora em que eles cantam: "Bendito Diós por encontrarlo en el camino", se atravessa em pleno voo, não sei de onde..., um pneu inteiro, repetindo, um pneu inteiro; não apenas a calota. Por sorte, muita sorte e milésimos de segundos, o tal pneu voador encontrou um terreno baldio. Tipo de situação que a gente chora e sorri ao mesmo tempo e que meteria pavor até mesmo nos terríveis personagens hollywoodianos como o Jason, do clássico Sexta-feira 13.
   O GPS deveria vir com consulta on-line de um clarividente, com sinal sonoro de "piii" prenunciando mensagens do tipo: "Altere seu trajeto, não pegue a RS 118, porque voará um pneu bem na frente do seu carro.”
   Vê-se de tudo, desde o sujeito que quer vencer a “corrida” a todo custo: para ele não existe sinal vermelho e sequer outros carros na pista. E ainda os desatentos, os despreparados, os brigões: uma reprodução do nosso universo social em amostras sobre rodas.
   O trânsito nos impõe sermos Sennas, mas eu não passo de mais uma motorista que precisa se deslocar de um lado a outro. E quando ligo o carro, meu sagrado ritual: agradeço pela vida. Quando retorno a casa e o desligo em definitivo, agradeço pela vida duas vezes. Isso, todo santo dia.

*Crônica publicada nos jornais: 
NH (Novo Hamburgo), 
Diário Popular (Pelotas),
Diário de Cachoeirinha/Sinos,
Correio de Gravataí/Sinos,
site do Correio Rural.


Pateta no trânsito - Walt Disney 

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Des. caminhos entre pétalas e fulgurações

Fotografia de Ana Cecília Romeu


Rebentação
Carrego comigo esse orvalho no olhar
a plangência no peito
e os pés cheios de inundação.
Há um rio que me atravessa.
                                                                       
Fértil
A pétala sabe, levemente quando cai
que seu destino é ser porto
do solo que a espera.
 (poemas de Adri Aleixo)


Posfácio de minha autoria publicado no livro Des. caminhos, de Adri Aleixo:

Des. caminhos entre pétalas e fulgurações

   Há uma mulher sentada em imenso campo. Segura uma flor cor areia e carmim por entre os dedos e desfolha mundos ao sussurrar do vento: “bem me quer, mal me quer...” Pétala a pétala desenha caminhos em dia de céu azul. O sol sela cumplicidade ao cortejá-la sem cerimônias. Ele sabe serem dela as muitas eternidades, as que começam na palma de sua mão de traços finos, serenos e sutilmente assertivos, e que alçam voo elegante ao tocar em nuvens de algodão e cintilar matizes com luz própria, fertilizando gotas e sementes: o transcendente, que letra por letra despetala em vidas, as muitas que o olhar do leitor pode colher e replantar.
   Sinto a obra de Adri Aleixo, Des. caminhos, como se a poeta deslizasse delicadamente seus dedos ao despetalar rotas e reconstruir horizontes.
   A tessitura de seus poemas possui a marca do olhar feminino sobre tudo que a habita. Por vezes, os detalhes, ou apenas um; em outras, a flor inteira.
   Em Des. caminhos, Adri Aleixo conduz o leitor ofertando com carinho um fio de Ariadne, que longe de asfixiar ou amarrar, o envolve em guirlandas de letras que situam e instigam sua imaginação no perder-se de tantas trilhas. Dentro desse inusitado labirinto construído pelo traço longilíneo e profundo, a escritora permite ao leitor criar outra dimensão, que em neologismo meu chamei de imã-ginação: a capacidade de atrair outros mundos ao seu próprio.
   O onírico, o telúrico, as forças da natureza, o ser em toda sua plenitude abordados na voz franca de suas indagações existenciais ao deslindar suas relações como quem conversa com amigo íntimo, marcam o Des. caminhos. Não existe nesta obra bússola ou termômetro, nada é mensurável, mas são tantas as pétalas de aromas vários e sabores à fruta fresca da estação que audazes tocam o intangível, traçando pequenos ângulos sem perpendiculares, onde aparentemente não haveria frestas a passar.
   A obra de estreia dessa nova escritora nos propicia perder-se em Des. caminhos para, pouco a pouco, pétala a pétala, sermos conduzidos ao profundo, onde tudo se faz mais claro e sereno. Lá, algures entre sinapses e fagulhas; em terra firme ou no alto mar, nos deixando livres na escolha entre o mergulho ou a exposição da claridade nos poros.
   Nunca me fez tanto sentido a pequena frase que rabisquei em um canto de página qualquer, como quando o olhar poético de Adri Aleixo a atestou: a beleza é anterior ao que se vê. Assim, a poeta escreveu seus Des. caminhos, entre pétalas e fulgurações.

Informações sobre a autora e a obra, neste LINK.


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quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Das ruas de um Porto-artista aos Alegres

Porto Alegre e o rio Guaíba - fotografia de Ana Cecília Romeu

Mesmo que esteja sangrando de um golpe fatal,
quero uma estrela no instante final.
(Nico Nicolaiewsky, na música: Só cai quem voa.)


Nico Nicolaiewsky - músico, compositor, ator, cantor, humorista - foi mais cedo para a festa lá do céu, aos 56 anos, no dia 7 de fevereiro. Artista que deixava a todos mais alegres, uma alegria furtiva, mas que ajudava a viver como tudo que nos cria degraus para dentro, feito chá de mãe em dia febril. Uma irreverência desacompanhada, a que encontramos em pessoas impares, em quem deixa obras relevantes, em cenários que são somente um.

Fotografia de Raul Krebs

   Recordo-me que assisti pela primeira vez à comédia musical Tangos & Tragédias, que fazia em parceria com Hique Gomez, na praia de Capão da Canoa. Eu ainda era criança, e em esquetes eles apresentavam o mundo fictício da “Sbórnia” e seus personagens: Kraunus Sang e Maestro Plestkaya. Nunca tinha visto nada parecido. E cantavam: “Ana Cristina eu não gosto de você, tô amando loucamente a tua mãe”. Será que meu futuro namorado pensaria assim também? E ali todos os efeitos da arte nas sensações da menina que, depois adulta, assistindo ao mesmo espetáculo que teve vinte e oito temporadas, esta última incompleta, teria a mesma impressão, de que nada era perecível, pois sempre estreia. O Tangos & Tragédias tinha também uma versão em espanhol que foi apresentada na Argentina, Equador, Colômbia e Espanha. Em Portugal, foi eleito pelo público no Festival Internacional de Teatro de Almada, em 2003, como o melhor espetáculo; e de honra em 2004.
   Fiz o caminho inverso, conheci depois o trabalho anterior do Nico, Saracura, uma das bandas gaúchas de maior relevância de todos os tempos, inaugurada nos anos setenta.
   Mais atual e caminhando junto ao projeto do Tangos & Tragédias, seus álbuns solo, as entrevistas, os shows, o espetáculo Música de camelô: universo de artista plural que respondia com surpresas à plateia ávida pelo inusitado.
   E assim, Nico partiu em voo da mesma cidade em que nasceu: Porto Alegre. Capital espelho desse artista: em suas ruas uma certa melancolia feliz; ironia sutil e inteligente em seus passeios; meio preto e branco, outro tanto a cores, mas com nuances sem uso de papel celofane, tal e qual o Theatro São Pedro, tantas vezes palco dele mesmo e seu último. Uma timidez de quem não precisava mostrar para aparecer, das ruelas do Parcão à Redenção, dos recantos da Rua da Praia aos cantos do Bomfim, aqueles, os irreverentes ao ponto certo. Luz própria de quem assistia ao sol laranja-vermelho se deitar sobre o Rio Guaíba, momento em perspectiva de quem era e sempre será: porto, cais e quebradouro. Reflexo e imensidão do Porto até todos os Alegres, nós, a quem a sua arte fez despretensiosamente mais Felizes.
                                                                               
Crônica publicada também nos jornais: 
Jornal do Comércio – Porto Alegre / NH – Novo Hamburgo 

Feito picolé ao sol - Nico Nicolaiewsky (com imagens de Porto Alegre)

 

Tangos & Tragédias - Aquarela da Sbórnia

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Na próxima semana a postagem: Des. caminhos entre pétalas e fulgurações - um brinde com alguns poemas de Adri Aleixo e mais o posfácio de minha autoria publicado no livro Des. caminhos dessa que é uma grande poeta e amiga. 

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Santa Maria de todos os tempos

Foto-divulgação NCST/RS - Pedro Costa

Quem disse alguma vez: 
até aqui o homem,
até aqui não?

Somente a esperança tem joelhos nítidos.
Sangram.
(Juan Gelman in Limites)



                                                                                                         *



A tragédia da boate Kiss - em Santa Maria, Rio Grande do Sul -  vitimou fatalmente 242 pessoas e feriu mais 116 na madrugada de 27 de janeiro de 2013, em incêndio causado pelo acendimento de um sinalizador para efeito pirotécnico por parte de um integrante da banda que se apresentava. O que iniciou pela imprudência, tomou proporções trágicas por falhas gravíssimas da segurança no local, gerando esta que é considerada a terceira maior tragédia em casas noturnas no mundo. (Fonte: portal G1. Globo)


    Um ano da tragédia da Boate Kiss. Impossível não relembrar do fato.
   Quando eu era adolescente, também esperava a semana inteira para que chegasse a balada do sábado. Ensaiava passos novos. Antes de sair, ouvia a listinha: “Não se esquece do casaco” - é a única coisa de que me lembro, porque era a primeira, mas pelo tempo que minha mãe falava acho que tinha mais umas dez ou onze. Nem sempre ficava feliz, esperar pela música mais lenta e nada acontecer era muito chato, mas quando chegava a casa, dormia e esquecia.
   A turma de amigos era sempre a mesma, formávamos uma espécie de “tribo da felicidade”, um happy-face compartilhado, se nem tudo estivesse bom, ainda assim era divertido. Nunca pensávamos que poderia acontecer algo fatal, não planejávamos o fim apenas os começos, queríamos vida e viver e era isso a sua maneira que acontecia, às vezes menos, em outras mais, mas voltávamos para casa para lembrar os fatos que julgávamos importantes e censurar parte deles aos pais, “editar a matéria” de um jeito mais inocente, o que sempre funcionava.
   Foi assim que descobri que o bicho-papão da infância fora promovido na adolescência para “estranho”: - “Não conversa com estranho”, “Não beija um estranho”. E assim, todos meus namorados e amigos um dia, pelo menos por algumas horas, me foram estranhos. Mais tarde aprendi que os únicos estranhos perigosos eram os “culpados” e, desde então, passei a temer os culpados. Os culpados que têm responsabilidade, mas se escondem na nomenclatura “fatalidade”, como se as tragédias, aquelas que podem ser evitadas, ainda assim fossem obra divina.
   Não conheci nenhuma das vítimas da tragédia de Santa Maria, mas é impossível não haver empatia, já fui adolescente, hoje sou mãe de alguém que um dia será adolescente e quando se perde um filho, não se perde somente o que se tem, se perde o que se é. 
   Nunca senti a fumaça negra, por isso hoje escrevo estas quaisquer linhas, mas minhas asas estão encolhidas e meu voo se faz palavra pequena, mesmo que somada a outras de tantas milhares de pessoas, porque estamos num mundo onde da tragédia se faz grande audiência, até a próxima notícia. Onde se trocam as palavras vida e futuro, por injustiça e fim.


Crônica publicada também nos jornais:
O DIA - Rio de Janeiro
Correio do Povo - Porto Alegre
A Razão - Santa Maria
NH - Novo Hamburgo
Diário Popular - Pelotas
E site do Correio Rural

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Circulo das bermudas

Fotografia de Ana Cecília Romeu

Diga-me como está meu amor no teu amor:
Frio, frio como a água do rio 
Ou quente como a água da fonte
Morno, morno como um beijo que se cala
e se acende,
caso queiras...
(da música: Frio, frio, -  Juan Luís Guerra)


   Verão no Brasil. No comércio uma situação que, se analisarmos friamente, apesar de parecer mero trocadilho, é dispare. Encontrei numa mesma loja de vestuário uma calça jeans no valor de R$ 60,00 e uma bermuda por R$ 160,00, a de se considerar que esta última deve ter uns 60% a menos de tecido do que a primeira.
   Recordei-me de quando morei em Rivera, cidade uruguaia fronteira com Sant’Ana do Livramento, Brasil; que havia uma sorveteria no verão, que na chegada do inverno, colocava à venda também casacos de lã. Na minha visão de criança aquilo parecia mágica. Era como se houvesse o verãoverno, uma nova estação que mesclava o frio e o calor.
   Ao observar esses meandros do comércio, no que tangem aos produtos sazonais, transportei-os para o aspecto pessoal sob a ótica dos relacionamentos de amor ou amizade, e da efemeridade dessas relações.
   Quem nunca teve um affaire de verão que jogue o primeiro guarda-sol! Mas para além dos contatos que podem ser compartilhados no calor do lazer ou do período de férias onde tudo parece assim tão perfeito..., o ‘volta às aulas’ ou ao trabalho, que caracteriza o nosso dia-a-dia, também está marcado pelos amores de estação.
   Por vezes, as pessoas se tornam como uma bermuda, própria apenas para o período mais quente; e quando o relacionamento esfria, caem em desuso como se fossem peça a ser estocada entre outras tantas num armário asfixiado por prateleiras cheias à espera de atenção.
   E o velho jeans, apesar de peça clássica, será inadequado na estação mais quente onde tudo o que é perecível parece ser a escolha certa: o sorvete a ser consumido rapidamente antes que se desfaça. E assim, o jeans se torna obsoleto e ‘asfixiante’ ao querer compromisso e frequência.
   As horas e suas intempéries nos mostrarão quem veio para permanecer em nossa vida em todos os climas. As cumplicidades que dividirão desde a capa de chuva até o óculos de sol.
   Os dias passam muito rápido para que se mensure pessoas e sentimentos via termômetro. Quem veio para ficar, sequer precisou de bússola pra nos encontrar, pois assim se fazem as inevitabilidades. E se somos de fato importantes ao outro, a nossa luz será compatível ao seu protetor solar: uma parceria que não causa danos à pele nem à alma.
   Sim, a vida é muito curta nos quatro tempos para não dizermos a quem amamos: você é a minha melhor calça jeans em todas as estações.


Blue Jean - David Bowie


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Adios muchacho

Fotografia da internet - sem referência autoral

Juan Gelman - grande poeta argentino faleceu na noite do dia 14 de janeiro. Para quem é apaixonado pela literatura platina, fica um vazio... O vazio da certeza de que não haverá novas letras dele; ainda que seus poemas não tenham tempo, muito menos fim. Em sua vida pessoal, Juan Gelman foi duramente perseguido pela sangrenta ditadura argentina, onde o homem se fez menos que nada.
   Aqui deixo a vocês fragmento de "El libro de los abrazos"- pag.229, de Eduardo Galeano onde relata isso; e "Epitafio", poema de Juan Gelman.

Gelman
- Eduardo Galeano -

   El poeta Juan Gelman escribe alzándose sobre sus propias ruinas, sobre su polvo y su basura.
   Los militares argentinos, cuyas atrocidades hubieran provocado a Hitler un incurable complejo de inferioridad, le pegaron donde más duele. En 1976, le secuestraron a los hijos. Se los llevaron en lugar de él. A la hija, Nora, la torturaron y la soltaron. Al hijo, Marcelo, y a su compañera, que estaba embarazada, los asesinaron y los desaparecieron.


Epitafio 
- Juan Gelman -

Un pájaro vivía en mí.
Una flor viajaba en mi sangre.
Mi corazón era un violín.

Quise o no quise. Pero a veces
me quisieron. También a mí
me alegraban: la primavera,
las manos juntas, lo feliz.

¡Digo que el hombre debe serlo!

Aquí yace un pájaro.
Una flor.
Un violín.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Sétima gaveta e recomeços

Fotografia de Ana Cecília Romeu

(...) não se esqueça que a felicidade é um sentimento simples, 
você pode encontrá-la e deixá-la ir embora por não perceber sua simplicidade.
Mário Quintana in Felicidade Realista


   O ser humano é um eterno insatisfeito. Dessas insatisfações, por vezes, curiosidades, explorações e (re)começos se ‘descobriu’ as Américas, por exemplo; e conheci dona Vera, vizinha querida com quem amplio os territórios da amizade.
   Recordo-me que a professora de francês me disse para nunca deixar a vida muito resolvida. (Ne laissez jamais votre vie très parfaite!). Em uma referência ao pequeno caos como fluxo de longevidade: andar pela contramão, jogar travesseiros por todos os lados. Mas a iconoclastia tem a fase da reconstrução, do recomeço, e isso dá trabalho imenso tal qual remontar quebra-cabeças de milhares de peças: o que mais nos edifica quase sempre não está na nossa linha de conforto.
   Talvez por isso se perceba tantos relacionamentos, de amor ou de amizade, sendo regidos por decreto: instantâneo do mando-obediência-estabilidade, do ‘felizes para sempre’ via corretor ortográfico, ou do ‘até que a tecla delete nos separe’. Já a democracia é trabalhosa, exige diálogo, negociação, diplomacia, é via de mão dupla.
   Há um tempo criei o que chamo de sétima gaveta. Um espaço imaginário onde coloco as tristezas, frustrações, perdas. E que fiquem por lá. Para ser forte e tentar ser feliz, é necessário enxergar o lado bom de tudo, e ele existe. Por vezes, a sétima gaveta abre involuntariamente soltando todos esses monstros: as pendências, as ausências, a pessoa que tirou a vírgula do “não, te amo”.  E não nos resta muito mais do que tentar desmitificar essas criaturas, as tornando mais parecidas com o brincalhão e pouco assustador Fantasma de Canterville, de Oscar Wilde.
   Optar pela luz não é ignorar a existência das sombras, até porque uma não sobrevive sem a outra, mas é tentar recompor-se para recomeçar, avançar; pois a felicidade, mais do que um processo, é uma opção.
   A tristeza é valorizada como forma de auto descobrimento, pré-requisito evolutivo. Não se enfatiza os momentos de felicidade como parte desse crescimento. Existe a ditadura escamoteada do sofrimento. A tristeza como imagem de profundidade, como se o contrário fosse bobo e superficial.
   Que bom seria que nunca nos esquecêssemos dos instantâneos mais felizes e das pessoas que contracenaram conosco: a plenitude pela partilha em forma de circulo aberto. Deveríamos ter uma parte do cérebro que impedisse apagar um olhar, aquele olhar..., a pequena eternidade que possibilita a continuidade da vida e seus recomeços.


La Paloma, Uruguay - Fotografia de Pedro Costa

[Retorno ao blog em 2014. Seguirei escrevendo aos jornais 
e divulgando essas publicações também pelo facebook.]

Um novo ano mais leve, com muita paz e saúde.
Se conseguirmos dois 'sim' para cada 'não', já estaremos no lucro nessa matemática-desafio que é a própria existência. Pois, que assim seja.
Agradeço a todos pela companhia que me fez e faz crescer muito.
Abraço do tamanho dos Pampas!

No litoral do Rio Grande do Sul.