Ao lado de meu apartamento, era o de número duzentos e dois, onde morava o senhor Motta. Nunca soube seu primeiro nome, muitos menos em que trabalhava. Talvez todos os grandes mistérios da humanidade seriam desvendados antes disso. Quem matou o Kennedy? O homem pisou mesmo na lua? Quando será o fim do mundo? Mas nas conversas de corredor, quando a tal pergunta era feita, em que ele trabalhava, seu Motta coçava a sobrancelha. Com tal perícia, me confundia falando coisa trás outra. Eu, esquecendo do assunto e mais uma vez ele se escapando.
Era abril, época da declaração de imposto de renda. Preferi fechar o escritório e concluir o serviço em casa. Ainda era de tarde, quando cheguei. Coloquei a pasta sobre a mesa e tentei continuar meu trabalho. De longe ouvi um "uan" "uan". Vinha do apartamento do Motta. Alguns "uans" a mais e não resisti, saí corredor afora. Quando cheguei perto da porta do Motta, ele a abriu com força. Todo vestido de preto e com a cara franzida, como se brabo estivesse, não disse nada. Dei um risinho e voltei para casa.
Coloquei um copo na parede para tentar ouvir mais alguma coisa. Mas os sons estavam misturados, parecia que alguém estava se sufocando. Assustado e extremamente curioso, passei a vir todos os dias mais cedo para casa. Percebi que metódicamente, duas vezes por semana, nas terças e quintas se ouvia os "uans". Sempre das cinco às seis da tarde. Nestes dias, sempre que saía para o corredor, parece que seu Motta percebia e vinha a meu encontro, vestido de preto, todas essas vezes.
Depois de duas semanas, e após três insistências da Ana que eu não o fizesse, toquei a campainha do Motta na última quinta-feira do mês. Isso já tinha ultrapassado minha tolerância. Exigia explicações. O Motta abriu somente uns dez centímetros da porta. Um cheiro forte de incenso percorreu minhas narinas sensíveis. Um espirro meu introduziu a conversa.
— Seu Motta, desculpe incomodar, mas o senhor não ouviu uns "uans"? — disse arqueando as sobrancelhas
— Uns o quê? — respondeu em voz alta
— É o seguinte seu Motta. É que eu tenho ouvido uns tais "uans" todas as terças e quintas à tarde.
— Acho melhor o senhor procurar um psiquiatra, sem ofendê-lo. Mas essa coisa de vozes...
— Não, o senhor não está entendendo — a sua fala foi interrompida
— Não, o senhor é que não está entendendo, o que eu tenho que ver com seus, os seus, o quê mesmo? — disse seu Motta indignado
— O problema é que meus "uans" vem de seu apartamento — disse rápido, com o rosto todo vermelho
— Chiiiiiii — colocou o dedo entre os lábios
— Chiiii, o quê?
— Não fala nada para seu Abílio, não quero incomodação com o síndico. Mas dá para ouvir os latidos? — disse preocupado
— Não. Se ouvem os tais "uans".
— Chiiii. Os seus "uans" são os meus latidos.
— O senhor late? Depois eu é que ouço vozes — disse encisivo.
— Não é isso — disse Motta me puxando pelo braço — entra aqui.
— Eu não — disse alto — eu vou é chamar o síndico, a mulher o síndico, até o cachorro do síndico para saber o que está acontecendo.
— O cachorro do síndico não precisa não, ele já está aqui no meu apartamento — disse me puxando novamente para dentro
Quando menos esperava, já estava dentro do apartamento. Os "uans" ficaram mais altos. Seu Motta me conduziu a um quartinho nos fundos e abriu a porta. A lembrança da comida da mamãe me veio à memória: o arroz grudado e o feijão aguado com cheiro de cigarro. Nada mais, nada menos que uns trinta poodles, num espaço de dois metros quadrados. Me explicou que pertencia a uma tal de Ordem dos Adoradores de Poodle, que recolhia os cachorros da vizinhança e recebia seus amigos para uma tal cerimônia. Dei uma risadinha e sai correndo dali.
Eu ainda estava no corredor, quando seu Motta veio e me pediu silêncio a respeito. Que o síndico já sabia e também participava da Ordem. Até o porteiro fazia parte, mas ninguém que não participasse poderia saber, para evitar comentários maldosos e blá, blá, blá.
Disse que iria respeitar a decisão, mas ele só teria que me responder a uma pequena pergunta. Seu Motta olhou de soslaio e me falou que se fosse somente isto: — Por que não?
Me preparei todo, estiquei a coluna e pensei, é agora.
— Seu Motta, é o seguinte...
— Fala rapaz — disse baixinho — tenho que voltar para os meus poodles
— Não se ofenda com a minha pergunta.
— Rapaz, é o seguinte, daqui a pouco o pessoal estará chegando para a cerimônia.
— Seu Motta — me estiquei novamente e engrossei a voz
— Fala rapaz!
— Afinal, quem matou o Kennedy?
Sem dúvida é o que eu mais gosto... pelo menos por enquanto! rsssss
ResponderExcluirQue legal. Muito bom.
ResponderExcluirDe um humor despretensioso, que nos faz acompanhar com prazer o conto.Muito bom!
ResponderExcluirSeu Motta precisa de um analista urgentemente...
ResponderExcluirahha
Abraço