segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Alma cabeluda


O Humoremconto, como o próprio nome diz,
é um blog de contos de humor.
Mas às vezes quebrar algumas regrinhas é bom, se faz necessário.
Neste post, uma crônica que fiz baseada num sentimento e
em algumas pessoas que me inspiraram definitivamente.
Espero que aproveitem e se permitam entrar no clima de Hair!
"When the moon is in the seventh house And Jupiter aligns with Mars..."
   Aquarius, música tema de Hair, filme dirigido por Milos Forman (EUA/1979), consegue materializar como película todos os anseios de uma geração. O roteiro é baseado em espetáculo homônimo da Broadway. Conta a história de um rapaz do interior que passa por Nova Iorque um dia antes de se alistar para a Guerra do Vietnã, e conhece um grupo de hippies, com os quais passa a conviver.
   "Quando a lua estiver na sétima casa, e Júpiter alinhar-se com Marte, então a paz guiará os planetas, e o amor dirigirá as estrelas".
   O filme marcou história, mas não parou no tempo.
   Pensando assim, depois de algumas décadas de vida, descobri que alma tem cabelo. Pois é! Alma tem cabelo sim! Tudo pelo amor ao equilibrio da tal "paz mundial", talvez a grande utopia pregada desde o século passado, mas um acordo de cavalheiros com o presente. Um nirvana de conceitos, onde o respeito ao diferente impera. Tendo consciência que somos seres em constante transformação, absorvendo, construindo; reconstrução e destruição, no acertar e errar: a iconoclasia cotidiana; mas buscando nossas histórias nas pegadas em conjunto, na areia marcada por outros pés. O respeito ao planeta, a natureza, ao próximo, até ao vizinho que mora ao lado, que deve lá ter seu motivo de ser tão chato.
   Tudo na vida pode dar certo, mesmo que pareça que está errado. É o desafio constante. Se fosse fácil e bonitinho, era só resolver algumas fórmulas no café da manhã e teriamos um dia perfeito.
   O Hair é mais que isso. Propõem o desafio do dia-a-dia. O choque de gerações e até de nós com nós mesmos, num constante divórcio do ir e vir individual. O descobrir suas capacidades e testar seus limites, de outra forma não tem como evoluir.
   A alma que tem cabelo está pronta para novos penteados. Um dia quer prendê-lo, em outro soltá-lo, colocar adereços, lavar, escovar. O careca não, almas com alopecia não se permitem opções e nem pentes usam. Costumam a conceber tudo em regras pré-determinadas. Privilegiam à técnica; ao bom senso. A si próprias; ao coletivo. Por isso são carecas de alma, sem opções de ter o privilégio de soltarem seus cabelos esvoaçantes por aí numa brisa da manhã.
   É meus caros, quem tem alma cabeluda reconhece nos outros todos os cabelos que têm, e propõem uma marcha quase silenciosa em busca de uma magia, um "clic" do destino: a grande utopia, a mística, que possa trazer melhor vida a todos. A verdadeira lei da compensação. Se eu fizer o bem; o bem retornará. Lei da física? Quem sabe? Mas calcada no respeito, apesar do desafio. Ser pacífico, mas sem atitudes estanques. "Viver, e não apenas aguentar". Esse é o Hair.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Francamente, senhor Wilde

É o título da minha crônica literária no site:www.portuguesepoesia.com

Roger Tavares, obrigada por ceder seu espaço.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Nostálgico


   Sempre que ouvia letra da música do cantor e poeta brasileiro Cazuza: "Meus heróis morreram de overdose...", Astrogildo tinha certeza de uma coisa: "Meus heróis morreram de tuberculose". Oscar Wilde e Casemiro de Abreu, dois deles, mas poderia citar mais.
  Astrogildo vivia assim, calça risca de giz, sapato brilhoso e pensando em como se sentia deslocado naquele mundo: internet, celular, carros automáticos, sem falar na tal máquina doméstica que fazia pães, era só colocar os ingredientes e "plin" depois "plun" e estava pronto. Que sem graça.
  Na sua vida amorosa, flores para a amada, canções no ouvido e muito tango. Tango? Mas o que é isso? Perguntou Tininha, filha do vizinho. Se assustou com aquilo, apesar de Astrogildo ser bonitinho. Foi embora.
  — Astro, meu bem, isso é macumba, reza, calma, carma, o quê? — disse Tininha
   Depois disso, nunca mais a viu.
Mas recordava dos discos do pai. Carlos Gardel, seu favorito. Ainda defendia por ser uruguaio:
  — Não era argentino, não! Tem até museu lá em Tacuarembó provando isso! — desafiava Astrogildo
  Pedia licença, desculpas e falava muitas vezes o obrigado, até sem motivo, mas ia marcando presença. Foi assim atraindo as moças mais recatadas, e as sem recato algum, que viam nele um desafio.
 Muito estudioso, bom nas letras e galante nas palavras. Excelente no discurso, foi escolhido por brincadeira dos colegas, como orador da turma. Pois, sorte a dele. Apresentação impecável, suscinta, garbosa, vocabulário trabalhado. Escrevera o tal discurso em manuscrito, e ainda por teimosia em caneta verde, como Pablo Neruda; mas muito míope, de noite não conseguia ler nada. Mas mesmo assim, se inquietava com o computador: letras pretas em tela branca, muito impessoal.
  Mas anos passando, e Astrogildo se atualizando, já lia livros da geração beatnik e ouvia rock dos anos 70, isso já no século 21. Se lembrava com saudosismo do seriado de Buck Rogers, do cara que tinha sido congelado e depois acordava nessa época. Assim vivia Astrogildo, contemplando o passado e se esquivando do presente.
  Certa vez foi convidado por namorada, para festa:
  — É reunião dançante — disse a namorada para convecê-lo a ir
  — Claro que vou! — disse Astrogildo.
 Mas chegando lá, teve a própria visão do inferno: purgatório, diabinhos, música muito alta, do tipo "tuc-tuc", gente fumando de tudo, se sacudindo, gritando, um horror! Mas Astrogildo não podia sair dali, muito apaixonado pela moça. Ela toda certinha, bonita, alta, magra, mas gostava daquele inferno. Fazer o quê? Para fugir daquilo tudo, Astrogildo foi no bar e pediu um drink
  — O quê? — perguntou o bar man
  — Um drink, por favor — falou Astrogildo
  — O quê? — perguntou novamente o barman
  — Um drink. Drink, entendeu?
  — Um o quê? Pinki, Dinki, Doo? Mas isso não é um desenho animado infantil? — disse o barman
  Tudo bem, Astrogildo ficou num canto, calado, pensativo, sem palavras, sem ouvidos e sem bebida, apenas observando namorada que dançava com duas amigas.
  Pensou mais um pouco, foi até ela, agarrou-lhe a cintura, puxando-a:
  — Posso dar-lhe um beijo? — disse alto no ouvido da moça
  — O quê? — disse a namorada.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

A Mosca



   O zumbido era ensurdecedor. Dentro do carro, dirigindo do shopping até a casa, e a filhinha sentada no banco traseiro, dizia insistentemente:
   - Mãe, tem uma mosca.
   Lembrou-se por segundos do filme "A Mosca", uma produção norte-americana dos anos oitenta, onde o personagem principal se transformava numa mosca após passar por uma experiência científica. O CD estragado, sem Elvis ou o Raul já estava difícil. Ajeitou os óculos de sombra. O ruído era tão intenso, nem parecia vir de uma única mosca, talvez o personagem do filme que havia ressuscitado?
   O carro fechado, verão, muito calor e o ar condicionado no máximo.
   Sinal vermelho. A moça abriu as janelas dianteiras tentando tirar a tal mosca. Esperto, o insetinho decidiu-se pelo ambiente mais fresco, encolhendo-se debaixo do banco.
   - Mãe, tem uma mosca! - disse a filhinha
   - Eu sei minha filha, mas não consigo tirá-la.
   Abriu semáforo. Fechou janelas, primeira marcha, segunda marcha, e a criança lembrava da tal mosca, zuuummmm...., terceira marcha, zuuummm..., mãe tem uma mosca, quarta marcha.
   A colega de ginásio, Laura Sardentinha, não seria tão companheira. A tal mosca parecia ouvir seus pensamentos. Em mesma sintonia, quando a moça tentava um golpe fatal, a bendita se esquivava.
   - Mãe, ainda tem mosca! - filha insistia
   - Falta só uns 2km e já chego em casa, já tiro essa coisa para fora do carro - disse a moça indignada.
   Mas tinha que dirigir dentro dos conformes, desde que sua filha nascera, decidira dirigir mais como o Brabinho e menos como o Montoya, da Fórmula 1. Nada de "muro ou vitória", agora só pensava em chegar, mesmo que fosse a última na corrida.
   Zuuummmmm.
   - Mas que m..... - gritou a mãe
   - Que é "m" mãe? - disse a filhinha
   - Filha, "m" é a letra de mosca, entendeu? É a primeira letra da palavra mosca - explicou atenciosa
   - Mas mãe..., a mosca ainda está aqui!
   Quinta marcha, acelerou, reduziu. Curva para a direita, sinal verde, zuummm, tem mosca mãe, curva para esquerda, conversão, reta, outro semáforo aberto, curva para a direita, casa, garagem, manobra, desligou o carro.
   Abriu as portas, tirou a filha da cadeirinha, e as duas sairam com pressa.
   - Mãe a mosca saiu! - disse a filha sorrindo
   A mulher comemorou abraçando a criança, um grande feito, guerra vencida. Nem sinal da mosca.
   Ainda segurava as compras, quando chegou na cozinha.
   - Vou preparar uma sopinha gostosa - disse a mãe
   Cortou os legumes com cuidado, separou temperos, adicionou água aos poucos, cozinhou em fogo brando.
   - Hora da janta, vem meu amor - disse a moça
   Serviu no pratinho com desenho do Mickey Mouse, exigência da filha, separou a colherinha e o suco.
   - Vem, filha! - disse mãe
   E a menina começou a comer o caldo com cheirinho de abóbora.
   A moça serviu seu prato, colocou-o na mesa, começou a comer.
   Zuuuummmm.
   - Será? - disse a mãe
   Zuuummmm.
   - Ai não acredito! - disse - A mosca de novo?
   Parecia maldição, feitiço, mambo jambo, mas o tal bichinho rondava de novo e dentro de casa. Fazia verdadeira vigília perto da cabeça da mãe.
Fechou os olhos, tentando esquecer a mosca, não sabia como se livrar daquela coisa, precisava tomar uma decisão, e seguiu comendo a sopa.
   O ruído acabou.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Futebol em dois tempos


   Os dedos grossos e quadrados do marido deslizavam com maestria sobre o controle remoto. Deixaria até Mozart com inveja, tamanha rapidez e eficácia com os teclados. Verdadeiro escort na arte de procurar canais de TV.
   Olhou no relógio, hora do futebol, pensou, buscou o canal e ali ficou.
   — Uau! Vai começar o jogo — disse marido
  Esposa sentada ao seu lado, quieta, braços cruzados, batendo pé direito sobre tapete peludo da sala.
   — Sensacional! — marido se empolgou com a entrada dos times em campo
   — Preciso te falar algumas coisas — disse esposa mordendo o lábio inferior
   — Olha lá! Olha lá! — disse marido — sabia que o Lesminha ia jogar.
   — Querido, preciso te falar algumas coisas — disse esposa
  — Olha lá, o Lesminha, lateral direito, sabia que estava escalado. Sem o cara não dá — disse marido
   — Querido, veja bem...— esposa foi imediatamente interrompida
   — Vai Lesminha, vai!
  Esposa mordeu ainda mais forte o lábio inferior, ignorando a "hora do marido", pretendia conversar. Teimosa, insistiu.
  — Querido, ultimamente você não está me dando a atenção suficiente — começou esposa — Tenho que praticamente implorar sua atenção, o vizinho da casa azul, conversa mais comigo que você — completou esposa
   — Lesminha! — disse marido, sem olhar para a moça
   — Não é o Lesminha querido, é o Alex da casa azul.
   — Não o Alex não, nem fala um troço desses, aquele cara não joga nada — disse marido indignado
   — É o vizinho, não o jogador — corrigiu esposa
   — O vizinho tá jogando, onde? Não vi ele — disse marido sempre olhando a TV
   — Olha é o seguinte meu amor, o Alex, o vizinho da casa azul, me dá mais atenção ultimamente que você que nem me olha. E vai pensando, pensa bem....— esposa fez uma pausa
  Segundos depois, seguiu desenvolvendo sua tese de grande mestre em relacionamentos.
  — Vai pensando bem, viu? O Alex é um homem bem bonito, tá bom? Está divorciado, não tem filhos, nem mulher traz na sua casa — disse esposa
  — Que é isso mulher, sou mais o Lesminha, o que as pernas do cara fazem com a bola, Alex nenhum faz — defendeu marido
  — É o Alex vizinho, entende? — disse esposa — Mas... espera aí, o nome do cara é mesmo Lesminha?
  — Olha lá, o grande mestre Osvaldir Lesminha com a bola, grande lateral direita, olha lá — disse marido
Esposa levantou-se do sofá, descruzou os braços e falou alto com voz firme.
  — Então quer dizer que o tal Lesminha é mais importante que eu? Quem mais? O insetinho, mosquitinho, bonequinho? Quem mais? Sim, porque você coloca todo mundo na minha frente — gritou esposa
  — Não faz isso. Oh Lesminha! Essa foi muito ruim, passou pro pior cara, o Alex Tufão, não dá! — disse marido
  — Alex Tufão? Tem esse bicho também? A propósito... — seguia teorizando esposa — O Alex, o vizinho, não o Tufão, nem o outro que joga mal, é muito interessante. Conversa comigo todas as tardinhas, sobre muitas coisas...
  — Mulher, futebol a gente não conversa, a gente joga. Não, não, assim não dá certo — marido sacudiu a cabeça
  — Ele é muito bem apessoado. Moreno, alto, musculoso, sorriso lindo, e muito inteligente. Ah! E está disponível, porque, como já te disse e você não me escutou, ele nem traz mulher pra casa — falou calmamente esposa
  — Ai mulher, pára de gorar, tá querendo dizer que o Alex Tufão é o quê?
  — Estou falando do Alex vizinho, da casa azul, recém pintada e reformada. Outro dia ele me convidou para conhecer a nova decoração. Cozinha de revista! Maravilhosa! Sala com componível de couro e no quarto, o colchão é daqueles duplos, que eu sempre quis — disse esposa — Mas entrei no quarto só para dar uma espiadinha. não te preocupa com isso ainda
  — Ainda? O quê? — disse marido, sem olhar para a moça
  — Ainda ... — fez suspense a esposa
  — Ainda não ganhamos, esse jogo parece de várzea, isso vai dar empate — disse marido
  — Ainda ... — disse esposa — ainda não te traí, mas experimenta ficar só olhando essa coisa aí, o tal de futebol. Inglês maluco que inventou isso. Será que tinha esposa?
  — Não o inglês não! Contrataram aquele cara, caríssimo, as luvas milionárias, em euro, idiotice dos caras, veio todo lesionado — disse marido
  — Olha, sabe de uma coisa, eu desisto! Vou embora! — disse esposa, saindo da sala
  — Tudo bem meu amor — marido viu a esposa sair — Que bom! Se foi! Agora posso ver meu jogo sem aquele blá, blá, blá — disse em voz baixa
Esposa saiu e caminhou determinada até a casa ao lado e tocou a campainha de Alex, o vizinho.
 — Nossa! Não acredito! Quem toca numa hora dessas, bem no melhor do jogo? — disse Alex, levantando-se da poltrona

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Lindo

   Um amigo me disse que o sujeito conseguira finalmente uma garota em tanto. Alta, coxas bem definidas, bumbum macio e empinado, algumas sardas no nariz. Pintada de cor jambo, com lábios brilhantes, ainda chamava o Arlindo de lindo. Como se não bastasse, esperava herança milionária de uma tal tia Vera, lá de Santa Maria. Fazendas com campos intermináveis, que sobrevoando, levava uns vinte minutos para ver tudo. Arlindo já se imaginava dono das terras ao lado da deusa, com um chicote em punho comandando a pionada. Até mesmo adotou no vestuário um estilo country, e nas lojas de CD's, procurava Chitãozinho e Chororó, como se fossem velhos amigos.
   Não demorou para o primeiro encontro privado com Wanda, a mulher da cor jambo, que de minissaia, exibia as pernas como se fossem chocolates ambulantes. Arlindo pediu para o primo um dinheiro emprestado, levou a moça no motel mais caro do bairro Ipanema. Todo entusiasmado, acelerava seu carro, modelo noventa e dois, entre carícias e beijinhos na orelha.
   Com beliscões e mordidinhas, entraram no quarto, uma imensa suite com cama redonda, piscina, cortinas peroladas, iluminação multicor e espelhos no teto e nas paredes. Puxava, amassava e era correspondido. Wanda piscou o olho direito e entrou no toalete. Arlindo aumentou o som, uma balada instrumental, e que, diferença fazia? As luzes deixou difusas. Separou o preservativo. A moça voltou vestindo calcinha e sutiã de cetim rosa antigo, foi logo abrindo os botões do colete de couro do rapaz. Arlindo ficou ainda mais entusiasmado com o reflexo de Wanda no espelho do teto. O corpo simétrico, rolava em cima do seu, não tão perfeito. Fiz horas de musculação essa semana, mas pelo que vejo não adiantou grande coisa, meus bíceps lembram dois mamões murchos. As pernas, muito finas. Nem parece que corri quilômetros. Ainda esqueci de cortar as unhas dos pés.
   - O que é isso cara? - disse ela - te beijo a mais de cinco minutos e nada - falou, protestando seus direitos de consumidora.
   Arlindo tirou-a para o lado. Um beijo excitante e olhou novamente para o teto. Agora a barriga, de perfil era como uma das inúmeras cachoeiras do Brasil com nome de Véu de Noiva. Toneladas em queda.
   - Parou o beijo por quê?
   Arlindo pensou que Wanda só poderia estar se divertindo. O que ia querer com um cara dez anos mais velho, sem grana e num completo estado de aposentadoria física ?
   Olhou para ela. Seria tão ingênua? Para todos os lados eram espelhos, até atrás da cama. Com um empurrão distanciou-se da moça. Escondeu nos lençóis escorregadios, o corpo ainda vestido com a cueca de algodão. Wanda insistia. Perguntou se ele viu o filme Priscilla mais de uma vez; se ouvia o Village People ou precisava mesmo de umas tais pílulas azuis.
   Arlindo olhou à direita, lá estava o maldito; à esquerda, lá estava o maldito; para frente ou para trás e aquela massa disforme e sebosa, no que se transformara o garanhão: um pangaré metido a besta.
   A tal Wanda se ofereceu até para pagar motel, pediu um vermute gelado, ensaiou streap tease e Arlindo, hipnotizado com os reflexos, ignorava por completo a exibição.
   Quase hora, com o rosto suado, finalmente olhou para os lados. Estava sozinho na suíte. Ele e os espelhos. Wanda sumira.
   Me disseram que, dois meses depois, o Arlindo foi visto comprando um terno completo risca de giz com gravata de seda italiana. Quem assinou o cheque foi uma tal de Eulália, a viúva de cinquenta e seis anos que mora numa cobertura de andar inteiro em bairro nobre da capital, e que por acaso é minha mãe.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

O gato dá sorte!

    — Lito? Mas que é Lito? — indagou Rodolfo.
   — A descrição que consta nos autos refere-se a um filo chordata da classe mammalia, de ordem carnívora, da família felidae, do gênero felis, espécie f.silvestris, cujo nome trinomial é Felis Silvestris Catus — leu o homem de óculos grossos.
   — Puxa que legal! — sorriu Rodolfo — Mas onde ficam as terras mesmo?
   O homem ajeitou os óculos no nariz e seguiu lendo:
   — Consta que o Felis Silvestris Catus em questão denomina-se Lito e foi deixado como único item a ser herdado pelo senhor Rodolfo Hernani Perez, de sua tia Amanda Filomena Perez...
   — Só um pouquinho — interrompeu Rodolfo — Deixa eu entender, o que é Lito?
   O homem seguiu:
   — Consta pela descrição tratar-se de um felino domesticado, SRD, sem raça definida — completou o homem.
   — Não é arenito, basaltito, pedrito, qualquer coisa em cima de uns 50 hectares, não? — disse Rodolfo perplexo.
   — É um gato, meu senhor! — por fim, explicou o homem.
   Puff!
   Rodolfo, homem muito alto e de peso avantajado, resvalou no assoalho lustroso da peça. Ficou estirado que nem massa de panqueca.
   — Um gato? O senhor quer me dizer que eu herdei só um gato? — gritou Rodolfo, ainda estirado no chão.
   — Sim e vem acompanhado de uma carta de sua falecida tia. Agora,  será feita a leitura da mesma para ser registrada como tornada pública.
   — Que vergonha, tia sovina! — Rodolfo disse com muita raiva levantando devagar.
   O homem abriu a carta em papel linho, com cuidado, e leu:
   — Meu caro Rodolfo, o que te deixei parece pouco, mas tenho a lhe dizer, meu sobrinho querido, é que o gato dá sorte.
   Rodolfo começou a chorar descontrolado.
   Um dia depois e o gato foi entregue a Rodolfo em sua casa. Olhou para o bichano, um gato simplezinho, amarelo de peito branco.
   — Olha senhor Lito, vou te aceitar porque gostava daquela tia sovina. Mas não me incomoda, senão tu vai virar comida de cachorro, ok? — disse olhando o gato no olho.
   Mas o tal gato era muito fino. Veio com carta de recomendação. Horário certo para as refeições; só comia ração importada; atum nos fins de semana, mas sem óleo, tinha que ser o natural light. Levar no veterinário uma vez por semestre; e na petshop, todas as semanas para escovar o pêlo com mousse.
   — Amanhã estou dando o senhor para a vizinha, a mulher está viúva e já tem seis gatos, mesmo! — disse furioso.
   Mas naquela noite Rodolfo teve pesadelo muito real. A tia Amanda, tocando na barriga do gato, dizia que se ele fizesse isso também, "com muita fé, meu sobrinho", o gato ia dar sorte. Sentiu até o perfume de violeta que tia usava nas missas dominicais.
   Na terceira noite com o mesmo sonho, acordou suado, passou lenço umedecido no pescoço e foi procurar o gato. Lito estava na poltrona da TV dormindo em cima do controle remoto.
   — Agora eu te pego cara, vem cá! — falou alto Rodolfo.
   Esfregou com muita força a barriga do gato, ficou com um quilo de pêlos nas mãos.
  — Agora tu vai me dar sorte! Tô precisando de grana, tô quebrado! Vai me ajudar, ou te levo pra vizinha! — disse furioso.
   O gato olhou para Rodolfo e depois para a lata de atum, que estava sobre o aparador da cozinha.
   Meses passaram e Rodolfo insistia, afinal a tia seguia aparecendo em sonhos. Todas as noites e o mesmo sonho. Chamou padre, macumbeiro, o síndico, a ex-namorada, a vizinha, o médium, até o padeiro, e o sonho seguia.
   — O gato dá sorte! — falava em todos os sonhos a tia Amanda, esfregando a barriga do Lito.
   Nada acontecia. Rodolfo cansou e deu o tal gato para a vizinha viúva.
   — Pelo menos ela não vai sonhar com a tia, nem a conheceu mesmo!  — conformou-se Rodolfo.
   Alguns dias depois, e a vizinha foi acometida de mal súbito. Faleceu na cama, abraçada ao Lito e seus outros gatinhos. Rodolfo deu graças a Deus, que havia dado o tal gato.
   — Esse gato dá é azar! — disse ele.
   A irmã mais nova da vizinha herdou tudo e os gatos também. A última vez em que foi vista por amigos íntimos, estava esfregando a barriga de Lito, tem gente que ainda ouviu ela dizer:
   — Obrigada meu gato preferido, amanhã vamos para Paris, ganhei em concurso passagem e estadia em hotel cinco estrelas e você vai comigo! — disse soridente.

Dedico a todos que amam os animais, em especial à minha irmã Bel, com seus seis cachorros e cinco gatos (por enquanto), e que me ajuda um montão aqui no blog!

Ah! E o gato Lito é meu, não dou ele, mesmo!

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Série "O" - Conto 10: O Ecologista

    Biodesagradável, era como o chamavam seus inimigos. De nome, José, também conhecido como Zé Plantinha para os parentes. Tia Dora dizia: "vem, a lasanha de espinafre está pronta". Família inteira vegetariana. Carne, nem o cheiro do churrasco do vizinho era permitido. Quando vinha forasteiro em primeira visita à família, era bem acolhido na sala. Aguardando bebida descafeinada, assistia ao DVD sobre dieta saudável. Se a pessoa se arriscasse em segunda visita, Dieta Saudável Parte 2. E sempre era assim.
 Ainda adolescente, Zé Plantinha abraçou árvore centenária. Gritou, argumentou, queria fato político. No mínimo dois jornais da cidade foram cobrir tamanha notícia, para desespero do agente municipal que tentava explicar o motivo da poda. Ops! Era apenas uma poda, mas vai explicar para o cara.
   Desespero de sua mãe, cinco anos depois, Zé Plantinha conseguiu namorada adepta do junke food: batata frita, cheeseburguer, refrigerante e ainda um salgadinho, um tal de Pegaditos com 100% de gordura trans. Mas apaixonado pela primeira vez, abriria tremenda exceção para aquela loira que nunca engordava, apesar do alto colesterol.
  Por vezes a questionava, afinal, quando se conheceram, por que ela tinha aquele adesivo do Greenpeace bem no meio do vidro traseiro do carro, e na direita o selo de proteção às tartarugas marinhas? Bem, mulher tem dessas coisas, pensou. Mas vou ficar com ela, é linda prá caramba.
  Com o tempo pensou em constituir família, mesmo que fosse com alguém assim tão diferente. Logo vieram os filhos. Zé Plantinha sugeriu nomes indianos tipo Shiva Alguma Coisa 1, Shiva Alguma Coisa 2, e assim por diante. Dessa forma tiveram três filhos: José Júnior, Paulo e João. Hoje, homens feitos, criados com boa picanha, cervejinha e ... batata frita. Colesterol alto é genético, diz a loira.
  E o casamento foi seguindo rumo certo até o dia do quinquagésimo aniversário de Zé Plantinha. Em visita aos pais para provar o mingau de banana. Na sala, Dieta Saudável Parte 1, para a vizinha nova da casa azul. Mas a moça morena, forte e peituda, estava com expressão normal. Quando disse nos créditos finais do DVD, olhando para todos que já conhecia aquele filme, Zé Plantinha se sentiu no auge. Encontrara a mulher da sua vida!
   Dias mais tarde, arrumando pretexto para vê-la novamente, foi devolver a tigela refratária que sua mãe havia pedido emprestada. Tocou a campainha. Tocou a campainha novamente e uma terceira vez. Morena atendeu Zé Plantinha com enorme sorriso, um gordo "oi" e uma coxa de galinha na mão esquerda, com pelanca e tudo.

Dedico a uma família que é muito unida e preza pelas questões ambientais e do próximo, meus amigos: Raquel (Rashmi), Fábio (Prasant), Joãozinho e Tainara.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Série "O" - Conto 9: O Novo Ano

   Madrugada do primeiro dia do ano, Bento retornava de cidade vizinha com a sogra, cunhada, esposa e filha. Passaram reveillón na casa da irmã dele. Boa comida, champagne, risadas, música e todos estavam cansados.
   Chegando na casa da sogra, às 3h, e cunhada de Bento dera pela falta da cachorra caçula, que ocupava a vaga de número seis no pátio. Os outros cinco caninos pulavam na roupa branca de Bento.
   — Mas onde está minha Kíki? — disse cunhada
   Kíki era o nome da fera. De apenas três meses, a pequena pastorazinha já media, em pé, quase a altura da sogra de Bento. Tinha as patas enormes, não a sogra; a cachorra da cunhada, ops! Não a cunhada cachorra, tá bom? O bichinho, mesmo!
  Logo se perceberam uivos, bem baixinhos, vindos da garagem. Numa excepcional obra arquitetônica, os pedreiros da sogra deixaram um vão de uns 15cm entre a garagem e o muro, não me perguntem porquê. Não deu outra, Kíki estava presa no vão, emparedada, de barriga para cima, usufruindo de sua infância canina e sua vida de cachorro, literalmente.
   Após conversa de minutos:
   — Preciso fazer um buraco na garagem para puxar a cadela — disse Bento
   — Tudo bem! — disse sogra com rosto verde e olhos gigantes
   E Bento começava o tuc-tuc. Mesmo não querendo assumir mais tarde, sentia um certo prazer em abrir buracão na garagem da sogra, no bom sentido, claro.
   Foi quase hora. Aberto o buraco, começava a sessão puxa-puxa. E nada. Puxa-puxa..., e nada. A cadela estava presa. Nova conferência: Bento, sogra, cunhada, esposa e até a filhinha opinavam. Conclusão: abrir buraco no muro pela parte externa, ficaria mais fácil puxar a bichinha. Cunhada, no desespero, chamou bombeiros e melhor amigo. Bento seguia sua romaria de preces e tuc-tuc.
   5h da madrugada, "tenho que tirar esse bicho, não pensei que passaria assim minhas primeiras horas do ano", resmungou Bento.
   — Estou pegando ela, alcancei! — gritou ele
  Puxou com força, entre latidos e mordidas, Bento, com a roupa toda manchada, mãos trêmulas, retirava Kíki do vão, após exaustivas horas.
   No mesmo momento, chegou a cavalaria. No Velho Oeste, sempre pontual; mas na vida real, a estatística era outra. Bombeiros e amigo da cunhada, tudo junto, para testemunhar grande feito.
   Bento ainda segurava a cadela, como se um bebê fosse, quando levou uma lambida gosmenta, do queixo até a testa. Se ouviu um "chulap" há metros de distância. Assim, Kíki fez seu primeiro agradecimento do ano.

Créditos do salvamento ao marido "Bento".
Agradeço também ao Volnei, sempre muito solicito, nosso grande amigo!



Essa é a nossa amiga Kíki, parece mentira, mas a história é real.