Levanta-se, caminha lentamente até o
espelho, passa batom coral e sai às ruas.
Observou suas linhas de expressão, a
pele aveludada de tessitura adulta se fazia depoimento vivo: sorrir e chorar
geravam vincos e vínculos.
Lembrou-se do medo de falar e das
muitas vezes que lhe taparam a boca. Que havia chorado ao depositar seu
primeiro voto; de quando era adolescente e debutou como um pequeno ponto em sua primeira
multidão, fora em noite chuvosa e fria no centro de Porto
Alegre, não coloriu os lábios e vestiu-se de negro.
Na fronte, imagens difusas de
espinhos e pétalas. Ainda acreditava nas flores e no visto de ida ao país que
não conhecia, mas sentia saudades. Levantou-se, caminhou lentamente até
o espelho, passou batom coral e saiu às ruas de um Brasil que não era mais o
mesmo.
Alma II - giz de cera sobre papel Canson, por Ana Cecília Romeu
Se te quero é porque
és
meu amor minha
cúmplice e tudo
e na rua lado a lado
somos muito mais que
dois.
(fragmento de Te quiero – de
Mário Benedetti)
Não somos uma metade que procura outra
metade para se completar, somos um inteiro que procura outro inteiro para
transcender.
O amor nos acrescenta para além de mera
unidade, nos transformamos pelo olhar do outro, é quando se dá o complemento. Uma
matemática toda esquisita e subjetiva para além da lógica: quando um somado a
um é mais que dois, como nas sábias palavras do poeta uruguaio Benedetti.
Nessa equação sentimental, alguns dizem que o problema é que se acredita
no ‘romance rosa’; no que contraponho, penso que a questão é quando não se crê
nele. Temos direito a sermos princesas ou príncipes. Não matem a cinderela, por
favor! Como chegar à majestade de nosso reino amoroso, sem antes
experimentarmos ser filhos dele, e se deixar levar, simplesmente? É quase como
decorar o ato de contrição sem mesmo ter pecado. Entendendo que isso é uma
fase, pois que ela seja ‘eterna enquanto dure’, como disse o poeta.
A vivência do paraíso nos trará mais adiante
a certeza da continuidade, ou das trevas. Quem inventou essa coisa de amor
planejou para que o Gênesis fosse a paixão, que nem sempre significará prenúncio
de Apocalipse.
Quando amamos, olhamos para trás e não
conseguimos imaginar o que já fizemos sem ser com aquela pessoa. Até os
momentos de discussão foram os mais belos, nossa melhor atuação, mas porque foi
compartilhado com aquele ator, não com outro.
O amor não é morno, ele oscila, passa por
todas as estações, todos os nossos tempos. É como um morrer e permanecer vivo,
como dizia Quintana. E um saber-se acabar no outro para se reiniciar: “não
morro de amor, morro de ti, amor”, sentenciou o mexicano Jaime Sabines.
E é um sentimento exigente. O amor altruísta
é o fraternal; o amor a dois é troca, o famoso ‘dar e receber’ para além da
permuta de fluídos, e não perdura se não temos a contrapartida, é quando nos dispomos
a ser cadastrados numa espécie de fila do sopão, mas queremos que o outro
também tenha se credenciado.
Só amamos quem conhecemos o suficiente para
perceber que o som nos agrada quando ouvimos, e ansiamos por repetição, sonhando
ser possível o lado B nesse CD, pois o ser amado é como aquele seriado que
colocamos em horário nobre e aguardamos cada capítulo: ainda que alguns
episódios nos decepcionem, esperamos nova temporada.
O amor deixa nossa alma tão hipercalórica
que já não cabe mais no corpo, é quando somos mais que um. E mesmo que o tempo
desbote, aqui e ali, o frescor das primeiras cores, desejamos a aquarela
inteira: o ontem que queremos hoje, porque nos trará nova manhã. Isso para mim
é o que chamam de amor.
Crônica publicada também nos jornais: O DIA (Rio de Janeiro); NH (Novo Hamburgo);
Diário Popular - seção Análise (Pelotas) e site do jornal Correio Rural.