quarta-feira, 26 de março de 2014

Transitórios em trânsito

Fotografia de Ana Cecília Romeu


Às vezes tudo se ilumina de uma intensa irrealidade
E é como se agora este pobre, este único, este efêmero instante do mundo
Estivesse pintado numa tela,
Sempre...
(Mário Quintana)

   Uma viagem insólita está prestes a acontecer. Grande aventura no melhor estilo surreal, mas de roteiro que não parte de um filme de ficção científica com naves interplanetárias à velocidade da luz. Essa viagem tem início no estacionamento, na garagem, na rua, em qualquer cenário urbano onde esteja o nosso veículo, e começa ao darmos a partida no motor, quando imaginar a próxima cena é uma coisa impossível.
   Capacidade mediúnica é o que precisaríamos no trânsito brasileiro. Nunca se sabe o que o motorista do carro da frente fará, visto que poucos usam a sinalização; e mensurar as ações do sujeito que dirige o carro detrás, visto que poucos usam os freios.
   No trajeto que percorro todos os dias, recordo do grande ídolo Senna e que ele foi, sim, o maior. Muito disso, provavelmente, se deveu a ter dirigido nas ruas e enfrentado o trânsito caótico e sinistro que temos. Tudo, exatamente tudo, parece se atravessar na nossa frente num piscar de olhos ou sem mesmo piscá-los.
   Sempre ouço CD no carro para suavizar um pouco a situação e outro dia escutando Bendita la luz de tu mirada, do grupo Maná, bem na hora em que eles cantam: "Bendito Diós por encontrarlo en el camino", se atravessa em pleno voo, não sei de onde..., um pneu inteiro, repetindo, um pneu inteiro; não apenas a calota. Por sorte, muita sorte e milésimos de segundos, o tal pneu voador encontrou um terreno baldio. Tipo de situação que a gente chora e sorri ao mesmo tempo e que meteria pavor até mesmo nos terríveis personagens hollywoodianos como o Jason, do clássico Sexta-feira 13.
   O GPS deveria vir com consulta on-line de um clarividente, com sinal sonoro de "piii" prenunciando mensagens do tipo: "Altere seu trajeto, não pegue a RS 118, porque voará um pneu bem na frente do seu carro.”
   Vê-se de tudo, desde o sujeito que quer vencer a “corrida” a todo custo: para ele não existe sinal vermelho e sequer outros carros na pista. E ainda os desatentos, os despreparados, os brigões: uma reprodução do nosso universo social em amostras sobre rodas.
   O trânsito nos impõe sermos Sennas, mas eu não passo de mais uma motorista que precisa se deslocar de um lado a outro. E quando ligo o carro, meu sagrado ritual: agradeço pela vida. Quando retorno a casa e o desligo em definitivo, agradeço pela vida duas vezes. Isso, todo santo dia.

*Crônica publicada nos jornais: 
NH (Novo Hamburgo), 
Diário Popular (Pelotas),
Diário de Cachoeirinha/Sinos,
Correio de Gravataí/Sinos,
site do Correio Rural.


Pateta no trânsito - Walt Disney