segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Série "O" - Conto 8: O Cunhado


   O cara é muito alto, 1,89m em pé, mas deitado parece que tem no mínimo 2,15m. Incrível como o sujeito cresce deitado no sofá da nossa sala. Esse é o meu cunhado. Ajeitadinho, loiro, olhos verdes, um pouco quieto, no peso certo e tem apenas duas paixões na vida: o computador e o nosso sofá. Até pensei em lançar novo conceito na arquitetura mundial, ao invés de sala de estar, por que não mudar a nomenclatura para sala de ficar? Cunhado sabe bem disso, se instala e vem para ficar. Anuncia fim de semana, mas emenda com o feriadão da outra semana.
   Se cuida e se alimenta muito bem. Café da manhã: dez pãezinhos franceses com muita manteiga, 800ml de leite, no mínimo, e ainda exige uma geleinha, quando não quer queijo e presunto. Ah! Ovos, somente cozidos, mas mal cozidos, molinhos, quase crus. É, cunhado dá prejuízo e sei bem disso, meu marido, irmão do talzinho, separa verba mensal para a hospedagem do moço, todo santo mês. Bem que poderia abater no imposto de renda. Sem falta, e o cara chega. Sempre com fome, simpático coitado, mas com todas exigências.
  Durmo pouco, sofro de insônia há muito tempo. Mas cunhado nem aí com isso, acorda sempre às 6h em ponto e já vai logo mexendo na geladeira, quando não liga o som e a TV. Mesmo em volume baixo, reduzo de cinco, para três horas, as poucas que tenho de sono.
   No último fim de semana, depois de repetir quatro vezes a lasanha, cunhado anuncia grande mudança em sua vida, que deveria ser comemorada por todos, inclusive por ele que, literalmente, comeria metade da torta de nozes.
  — Consegui emprego na área de informática em grande empresa — disse orgulhoso, engolindo a torta.
   — Parabéns! — fiquei contente.
   Cansado, com responsabilidade, talvez venha menos, ou traga um ranchinho, será?
  O tempo passando e cunhado engordando, criando barba, falando mal dos outros e juntando dinheiro. Apareceu menos vezes, mas as poucas, com mais fome ainda.
  — Trabalho cansativo, estou estressado — disse cunhado, entre uma dentada e outra no churrasquinho de domingo.
  Depois do almoço, se estirava religiosamente na rede, se tornava paisagem do jardim esverdeado. Dormia e dormia.
  Assim cunhado foi juntando muito dinheiro. Bom salário, economizando os fins de semana na casa do irmão e arranjara namorada rica que pagava tudo, mas feinha a pobre.
   — Mano, comprei casa lá no interior — disse cunhado — Vou demorar para vir em outro fim de semana.
   — Que pena... — eu disse aliviada.
  E a casa era muito boa, pequena, mas uma gracinha. Bem decorada, caprichada, geladeira cheia e TV bem grande.
   Meu marido e eu fomos visitá-lo. Ficamos todo fim de semana. Vingativa, abri toda hora a geladeira, me servi de tudo, exigi marca de refri e que fosse geladinho com pedaço de limão, e por aí afora. Chegada a noite, iríamos dormir na sala. Cunhado preparou confortável sofá-cama com lençóis cor lilás e cherinho de amaciante.
   — Boa noite! — disse cunhado, apagando a luz da sala.
   Minutos depois.
   — Meu amor — disse a meu marido.
   — Que houve mulher?
   — Que sofá booommmm!
   Dormi muito bem naquela noite.


Feliz ano novo a todos!
Que em 2011 tenhamos menos "malas" para aguentar; mas que seja um ano de boa bagagem de saúde, paz, amor e acréscimo em coisas boas!!!

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Série "O" - Conto 7: O Papai Noel

   O nome dele era mesmo Noel. Desde pequeno adorava festas e distribuir presentes. Pais muito ricos, e Noel tímido. Com presentes caros, ganhava novas amizades e mantinha as velhas. Virou a sensação do bairro: o cara que distribui presentes. Mas Noel fazia isso em qualquer época do ano, nem esperava o Natal, para quê? Assim que sentia mau olhado, fofoca, inveja e mulher bonita. Mais presentes!
   Dinheiro não lhe faltava, seu pai era dono de uma rede de ferragens que dava muito lucro com o "boom" da construção. E Papai Noel, como ficou conhecido mais tarde, se beneficiava disso, tornando-se cada vez mais popular. Tinha até comunidade no orkut.
  Natal, e Noel trabalhava muito. Comprava brinquedos em quantidade e distribuía para as crianças. Cigarros para trabalhadores e charutos para empresários. E muitos presentes, em especial para as mulheres, sua segunda paixão depois de presentear.
   Mariana, Eufrásia, Godofreda, não interessava o nome, contanto que fosse volumosa. Não precisava nem falar, mas se quisesse agradecer, Noel tinha boa sugestão.
   Certa vez, a esposa de Cláudio, dono da academia de karatê do bairro, foi presenteada com finos brincos de ouro por Noel. Cláudio veio querer satisfação, tirando a camisa para o primeiro soco.
   — Ho, ho, ho — disse Noel.
   — Tá pensando o quê? — gritou o Cláudio furioso.
   — Ho, ho, ho — repetiu Noel.
   — Qué leva um soco agora, ou daqui a dez segundos?
   — Ho, ho, ho — novamente Noel — Tenho um presente para você.
   — Não vem com essa — disse Cláudio.
   — Ho, ho, ho. Tenho presente para você — disse Noel.
   — O que tu qué cara?
   — Ho, ho, ho. Tenho presente. Aceita?
   — Tá falando a verdade Papai Noel de araque? — disse Cláudio.
   — Juro pelo Papai Noel verdadeiro! — disse Noel.
   — O que é?
   — Ho, ho, ho. Antes tem que dizer se aceita.
   — Qual é, cara? — disse Cláudio.
  — Papai Noel só dá presente se você aceita. — disse Noel, enrolando a barba com o dedinho mingo.
   — Eu topo!
  Semanas depois, Cláudio foi visto em carrão sedã azul calipso, dupla carburação, pisando firme em primeira marcha.
  — Viu, esse foi fácil. Me livrei daquela bomba. Meu amigo chapeador fez a lata toda, parece novinho, mas o motor..., ho, ho, ho — disse Noel, agarradinho na mulher de Cláudio. Ops! Na ex-mulher.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Série "O" - Conto 6 - O Futebol 2


   Até um ano de casado, meu marido nunca me respondia a simples pergunta que vez por outra lhe fazia:
   — Para qual time de futebol você torce, meu amor?
   O cara ficava parado, olhava para os lados, depois sempre dizia:
   — Tanto faz..., não gosto de futebol, mesmo...
   Era sempre a mesma resposta. Tudo nas reticências...
   Eu sou roxa de tão azul pelo meu querido time tricolor gaúcho, Grêmio. E ele sabendo disso, esperou os 365 dias de casamento. Passado o primeiro ano de "ajuste" matrimonial, me olhou de soslaio e disse, num tranquilo café da manhã dominical:
   — Meu amor, acho que torço para o Internacional.
  Imagina, era só o Internacional, time arquirival do Grêmio. Coisa pouca... Sem dor nenhuma. Mas naquele dia, tive que dormir de tarde, a famosa "sestia", como dizem aqui no sul. Fiquei calma e a tal coisa foi ficando menor, menor, e fui esquecendo. Mas, algumas semanas depois, em visita a casa do sogro, conversando com uma cunhada, descobri que meu marido "achava" que torcia para o Internacional, há muito tempo, provavelmente desde que nasceu. Penso que na maternidade do Hospital de São Sebastião do Caí, tinha um menino chorando no ritmo da musiquinha: "Inter, clube do povo!" Um horror! Me senti traída. Produto defeituoso, sem possibilidade de troca. Passado um ano de uso, nem tinha como devolver o cara para seus pais, já tinha perdido a garantia.
   O cara é colorado? Tudo bem, fica calma... Espera aí! O cara é colorado? 
   Tudo bem se ele torcer para o Inter, é só futebol... Mas o cara é colorado?
   — Por que tu não me falou que era colorado? — disse furiosa.
   — Achei que não era importante — disse o marido.
   — Pois é, a questão não é tu torcer para um time adversário, é tu nunca ter dito nada. Parece traição, escondendo informação. Agente duplo da CIA? — disse mais furiosa ainda.
   — Quando a gente se conheceu, tu disse teu nome e logo já foi dizendo para que time de futebol torcia, como se fosse teu sobrenome: "Ana Grêmio" — disse marido.
  — Eu estava me apresentando para o senhor Pedro Internacional, que na época se chamava, Pedro não gosto de futebol — eu disse muito irritada.
  — Tu sempre falou que só ia casar com gremista, que a metade da cama estava reservada para um torcedor do Grêmio. Se eu dissesse a verdade... — disse o marido
  — Se eu dissesse a verdade, o quê? — perguntei.
  — Ora, não teria casado contigo! — disse marido.
  Segundos depois da última afirmação, que considerei algo do tipo: declaração de amor meio torta, deixei por isso mesmo. Afinal, é só futebol, deixa o cara se expressar. Fazer o quê, se meu princípe encantado era um príncipe encantado colorado? o que poderia tê-lo rebaixado a sapo...., mas tudo bem, de sapo não tinha nada. Tudo bem.
 Passados alguns anos da famosa revelação de meu marido, mais precisamente hoje, dia 20 de dezembro, há pouquinhos minutos atrás, minha filha de três anos, me olhou no café da manhã, deu sorrisinho e cantou:
  — Inter, clube do povo! Inter, clube do povo!— no ritmo certo, sem desafinar
 
Bom que tivesse sido ficção, mas tudo aí acima, com alguns enfeites, foi verdade, mesmo!


terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Série "O" - Conto 5: O Futebol

   
   Vitor tem duas paixões, seu time de futebol e a esposa. Exatamente nessa ordem. Três anos de um casamento bem negociado, do tipo um cozinha e o outro lava a louça. O casal estava à espera de seu primeiro filho que nasceria em quinze dias.
   Naquela terça-feira, Vitor, entusiasmado, final de campeonato e seu time com chances de campeão. Amigos viriam buscá-lo para ir ao estádio. Tudo combinado, sem atrasos. Buzinaram na hora marcada.
   — Meu amor, o pessoal chegou, estou indo — disse Vitor.
   — Não sei não, tem uma coisa estranha, meu bem — disse esposa.
  — O que tem de estranho é que tenho que ir. É meu time, querida — deu beijinho no rosto da moça.
  — Não, espera meu bem! — disse esposa — minha barriga tá com umas dorzinhas.
   — Ah, não! Diz pro garoto se acalmar!
   Vitor tocou na barriga da esposa e falou:
   — Meu filho, dá um tempo, hoje é a final do nosso time, se acalma tá? Dá 
uma dormidinha aí, que te vejo na volta — disse, esfregando a barriga da esposa.
   Amigos buzinaram novamente.
   — Já vou! — gritou Vitor aos amigos.
   — Não, meu bem, espera! — disse esposa.
   Chuammmmmmm!
   — Que é isso? — perguntou Vitor assustado.
   — Meu bem, estourou a bolsa! O bebê vai nascer!
   — Essa não! — Vitor disse não acreditando — Que faço?
   — Meu bem, temos que ir ao hospital! — disse esposa.
   Vitor saiu para fora da casa, falou com os amigos, pediu conselhos, pensou em reza braba, até no professor de alemão da escolinha dos padres.
    — Faz assim, pessoal, vão para o estádio! Coloco ela no hospital e voo para lá — disse Vitor — Não perco mesmo esse jogo! Não sei como vou fazer, mas dou um jeito.
   Amigos foram ao estádio. Vitor tirou o carro da garagem e colocou esposa dentro. Em minutos, estavam no hospital. Em Fórmula 1, teria vencido Vettel muito fácil.
   — Aqui está! — Vitor disse à recepcionista, colocando a esposa numa cadeira de rodas.
   — Mas meu bem...— a esposa falou baixinho.
   — Meu senhor, tem que encaminhar a papelada, dar entrada nos 
 documentos, entendeu? — disse recepcionista.
   — Só faltava essa! — disse Vitor — Sempre a tal burocracia.
  Minutos passaram. Vitor sempre olhando no relógio. Como faço? Pensou. Assinara os papéis de entrada. Tudo estava encaminhado. Mas como faço? Orientaram que deveria colocar roupa adequada e se dirigir a sala de pré-parto. Mas como faço? Pensava Vitor.
  Como naquelas coisas que só acontecem em novela das oito, passou ex-colega do banco e reconheceu Vitor na recepção.
   — É você mesmo, cara? — disse Vitor, puxando o moço pelo braço.
   — Mas quanto tempo! — disse o moço — O que houve, parece assustado?
   — Me salva, cara, preciso que tu acompanhe minha mulher na sala de parto, é coisa simples, é só ficar com ela — disse Vitor — Preciso ir no jogo!
   — Tá louco? — disse moço.
   — Não te lembra que já te salvei da tua esposa, quando ela ia te flagar com outra? — disse Vitor nervoso.
   Não precisou mais que isso. Quando a enfermeira chamou o nome de Vitor, moço foi entrando e fazendo às vezes na sala de pré-parto.
   Horas depois, Vitor retornava ao hospital com rosto vermelho e voz rouca. 
Esposa deitada com bebê ao lado, quase dormindo, muito cansada, como se tivesse subido ao Everest duas vezes. Vitor olhou emocionado. Se sentiu duas vezes campeão.
   — Meu amor, te amo! — disse esposa, acordando.
   — Também te amo! — disse Vitor.
   — Você foi maravilhoso — esposa sorria — Será um ótimo pai! — disse com 
vagar — Segurou minha mão todo tempo na hora do parto e ainda me disse que nosso bebê é a sua cara.
   — Disse? — Vitor coçou a cabeça.


Time de futebol campeão do Humoremconto:
Deixe nos comentários por qual(is) time(s) de futebol você é apaixonado.
Qual será o time campeão dos seguidores do blog?

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Série "O" - Conto 4: O Chinelo

   A casa, um sobrado bem construído em estilo rústico, com sacada na frente e nos fundos, tijolos aparentes na fachada, jardim com plantas cuidadosamente garimpadas de diversas espécies, com flores todas da mesma cor: fúcsia. Ao entrar, ampla sala de estar, piso frio de porcelanato, sofás em componível, contornando lareira de demolição em ferro fundido. No centro, tapete felpudo que Anita adquiriu em viagem ao Chile. Em cima dele, os chinelos de Osório.
   Espera aí..., sobrado, decoração rústica, lareira, sofás, chinelos no meio da sala, em cima do caro tapete de lã de llama? Algo não está combinando! Era o que pensava Anita. Mas no início do casamento, bem lá no inicinho, os tais chinelos pareciam ter vida. Estavam no banheiro, na sala, no quarto, se materalizavam do nada, sempre atrás da esposa. Agora, depois de 15 anos de convívio, Anita tinha uma certeza: sim, eles têm vida. E toda vez que a esposa, católica que tanto era, escondia o par no closet, lá estavam os tais chinelos como parte integrante do tapete da sala, como quem diz: "mulher, perdoai,  que teu marido não sabe o que faz".
    O pior de tudo é que Osório é um cara alto, mais de 1,80m, e pasmem, calça 43, no que dá para concluir que os tais chinelos são, na verdade,  duas pranchas de skyboard, ou de surf, mesmo, mas aquelas dos filmes do Elvis na Sessão da Tarde, as nostálgicas longboards.
   Casamento também longo, e os chinelos de Osório foram se transmutando. Ora pretos, depois verdes, com tiras coloridas, sem tiras, estilo papete; no inverno, de camurça. Mas sempre ressuscitando no tapete da sala.
  Certa vez, Anita colocou o chinelo vermelho temático de um tal time de futebol no lixo reciclado, quando Osório saiu mais cedo para reunião. Ufa! Acabou! A esposa ficou tranquila, não precisaria overdose de acessos diários no blog da amiga Rejane, para se acalmar; nem tantas horas de shopping com a Renata baixinha. Agora, só para conversar amenidades, as tais pranchas do marido, ficariam definitivamente fora dos assuntos de ata. Mas, exatamente as 20h30, do mesmo dia, Anita desceu para preparar a janta, olhou para o tapete, e lá estava outro par, novinho mesmo, todo brilhoso com tiras brancas. Quase desmaiou. Hoje, acabo com isso. E o marido nem estava em casa, como foi aparecer ali o modelo zero km?
 Quando se conheceram no cursinho pré-vestibular, Osório sempre engravatado, terno bem cortado, sapato social lustroso.
  — Na época que tu só usava sapato social... — era sempre assim que começavam as discussões da esposa.
   Num dia especial, Osório, todo romântico com presente em papel dourado, chegou mais cedo dos clientes, cancelou compromissos, fizera reserva em caro restaurante, era dia 10 de dezembro. Data de início do relacionamento.
   — Nossa, 21 anos que te conheço — falou Anita
   O marido cheiroso, com perfume que se paga em dólar, entregou o presente. Anita abriu com cuidado, colecionava papéis finos. Uma caixa aveludada cor bordô e detalhes em baixo relevo. Dentro: par de chinelos tamanho 37, de um tal time tricolor gaúcho de futebol. A esposa colocou-os em cima do tapete, faceira e ficou observando.

Dedico ao Pedro. Graças a ele, desenvolvi recente e eficaz técnica de esconder chinelos, depois de longos 15 anos de exaustiva experimentação.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Série "O" - Conto 3: O Sovina


   Se Gastão imaginasse que seus últimos dias seriam envoltos em contas e mais contas, trataria de buscar a eternidade. Disseram-lhe que havia pajé-celebridade na tribo dos Beiçudos, possuía elixir milagroso. Mas dispensou a dica, quando descobriu que o preço das passagens áereas para o Amazonas, mesmo na promoção da madrugada, e o tal elixir, que não era bônus nem nada, estavam um tanto quanto onerosos para seu paladar.
  De pequeno, ganhava livros com ilustrações para colorir do seu pai, cidadão modelo de Tupandinha, interior de Rondovaí. Deixava assim como chegavam, intocáveis, tudo preto e branco, só no contorno. Para que gastar a tinta das canetinhas? Para que colorir um desenho se vou ficar com menos desenhos para colorir? Foram suas primeiras indagações existenciais. Isso, aos quatro anos de idade. Ainda hoje, Gastão tem os dezoito livros que papai lhe deu. Tudo no contorno. Estante de plástico. Não enferruja, sem cupins e custou uma bagatela.
   Aos vinte anos, primeira namorada séria. A moça também era muito séria, e tudo na convenção. O homem tinha que pagar tudo. Não iria sair com um incapaz. O príncipe tinha que mostrar o castelo de cinquenta cômodos, cavalo branco puro sangue e roupas de veludo e rendas. Dois meses e acabaram as explicações de Gastão à bela moça: esqueceu carteira, de validar o cartão, da identidade, do outro cartão e da senha do cartão. A namorada se deu conta, foi procurar príncipe baixinho, moreninho, feinho, riquinho e gastador; pois Gastão: loiro e alto, bom de corpo, olhos azuis, brilho nos cabelos, riquinho e só.
  Assim, nosso príncipe se declarou um feminista. Direitos iguais! Não se casou, poucas namoradas e ainda foi visto na caminhada pelo direito dos homens celibatários, ou coisa que o valha. Era perto de sua casa, com o pessoal da Igreja, sem gastos e padre prometera lanche para os rapazes na hora do descanso.
  Mas um mal do coração lhe acometeu aos trinta e cinco anos. Foi extinguindo Gastão bem aos poucos, que nem aquelas palestras demoradas que a gente pega no sono esperando a hora do coffe break chegar. E isso lhe custou muito caro. Vendeu apartamento em que morava, o do inquilino Pedro, que pagava em dia, e o do Paulo, que nunca acertava com o condomínio. E Gastão ainda se desfez do carro. Não, espera aí! Corrigindo..., Gastão não tinha carro, gasolina cara e o tal de álcool era propaganda de político, segundo ele.
Meses e meses. Hospital oneroso na cidade grande. Comida ruim, cama de faquir, controle remoto com pilhas fracas e enfermeiras com péssimo serviço: sem sorriso, nada de favores e indelicadas. Pagava muito. Produto defeituoso. Venderam-lhe a idéia de casa de repouso. "O senhor vai se sentir num hotel", lhe havia dito o diretor. Depois de um mês, se lembrou da promoção das facas Ganço, que nem cortavam, nem dava para afiar, e ainda se partiam do nada na tentativa de picar as cenouras tenras da mercearia do Antonio, o único que ainda aceitava no caderninho. Pelo menos as facas foram quase de graça.
  No quarto do hospital, a mãe de Gastão, compadecida com o jovem tão amarelinho e triste, disse:
  — Viste? O menino tem coração ruim.
  — Com certeza — disse o médico
  Antes de ficar mais amarelo, Gastão ainda reparou que a mãe estava com sapato de couro de salto alto. Ainda pensou que sapatilhas seriam os calçados mais adequados. Combinavam com tudo, até com aquela calça jeans dez anos de closet; não causavam problemas na coluna, sem gastos com clínica ortopédica; sintéticas, mais em conta, e ainda passava por moderninho, tipo ecologista. "Pelo fim da matança indiscriminada das vaquinhas". Carne cara, couro caro, deixem elas pastando.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Série "O" - Conto 2: O lutador

   Russo levava soco da vida, parecia o Mohamed Ali, todos os socos do mundo, mas não caía. Nas lutas que disputava, deixava os punhos do adversário que nem duas abóboras carameladas, e o Russo estava sempre de pé.
  Certa vez, depois de nocautear dois lutadores em noite de gala no Adelino’s Club, foi para casa. Ainda segurava a bochecha esquerda, um dos famosos tiques de Russo, quando entrou em casa. A mulher sentada assistindo novela com seu amigo Osvaldão que o esperava. Suspeito, pensou Russo, mas o cara era seu amigo desde época em que treinavam dando soco em lata de Neston.
  Osvaldão falou do esquema de novas lutas, como ganhar mais grana, tem umas bocadas legais, lugar de gente fina, só rola soma alta, e tu Russo é o cara que aguenta essas paradas. Russo aceitou, o dinheiro para o aluguel estava curto e manter mulher nova, com roupa nova, sofá novo, panela nova, era muita coisa.
  Duas noites depois, e Osvaldão cumprimentava todo mundo com três tapinhas nas costas. O cara do bigode, o sem bigode, o gordo, o magro, o feio e o nem tanto. Conhecia todos pelo nome e acertou luta para Russo.
   Mais duas noites e Russo se via em plena arena, fumaça, cheiro de alvejante e perfume doce. Começou o festival de socos. Russo aguentava, sempre aguentava, mas nesta noite estava especialmente cansado. Levava todos os socos, como sempre, e não caía, mas estava atacando pouco. Nos intervalos, Osvaldão preocupado, mastigava o já esfarelado chiclé:
   — Puxa Russo, o cara do bigode e o feio, são donos daqui, prometeram muitas lutas para ti, mas não me decepciona cara.
   Russo volta à luta, não cai, mas quase não dá soco.
   Intervalo.
   — Russo, que tá acontecendo, cara?
   Leva soco, não dá soco.
   Intervalo.
   — O cara do bigode tá olhando torto e o feio, tá mais feio ainda. Reage homem!
   Mais soco. Sem soco.
   Intervalo.
   — Que tá acontecendo amigo? Fala para mim, tu tem que vencer,  cara!
   — Tenho que te falar uma coisa Osvaldão — disse Russo com voz estridente
   — Que houve cara?
   — Não quer levar aquela mulher pra ti? — falou Russo
   — Que mulher, a tua?
   — Sim cara, não aguento mais.
   Mais soco. Sem soco.
   Intervalo.
   — Mas não quero tua mulher, que é isso, tá me estranhando? — disse Osvaldão
   — Só consigo vencer se tu levar a mulher longe da minha vista, não aguento mais.
   — Por que cara?
   — Bonita, mas muito cara, e agora tem um tal de computador — disse Russo
   Osvaldão pensou que era uma boa, já tinha caso de mais de ano, não precisaria ficar passando os tais de e-mails e a mulher não era tão cara assim, aceitava sexo com camisinha perfumada da promoção.
   — Topo!
   Russo levou soco, deu muito soco e venceu.
  Bigode sorriu. E o feio, mais feio ainda, com a boca aberta, os dentes pareciam uma montanha russa despencada.
  Meses depois, décima vitória, Russo chega em casa. Esfrega a bochecha amarelada antes de ligar o computador, digita mensagem:
   — Mulher, amanhã me traz o arroz bem branco, nada de misturar cebola. E diz pro Osvaldão que ele é forte, essas coisas, o baixinho vai se achar fortão, e não atrasa o teu,  pro meu aluguel.