quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Santa Maria de todos os tempos

Foto-divulgação NCST/RS - Pedro Costa

Quem disse alguma vez: 
até aqui o homem,
até aqui não?

Somente a esperança tem joelhos nítidos.
Sangram.
(Juan Gelman in Limites)



                                                                                                         *



A tragédia da boate Kiss - em Santa Maria, Rio Grande do Sul -  vitimou fatalmente 242 pessoas e feriu mais 116 na madrugada de 27 de janeiro de 2013, em incêndio causado pelo acendimento de um sinalizador para efeito pirotécnico por parte de um integrante da banda que se apresentava. O que iniciou pela imprudência, tomou proporções trágicas por falhas gravíssimas da segurança no local, gerando esta que é considerada a terceira maior tragédia em casas noturnas no mundo. (Fonte: portal G1. Globo)


    Um ano da tragédia da Boate Kiss. Impossível não relembrar do fato.
   Quando eu era adolescente, também esperava a semana inteira para que chegasse a balada do sábado. Ensaiava passos novos. Antes de sair, ouvia a listinha: “Não se esquece do casaco” - é a única coisa de que me lembro, porque era a primeira, mas pelo tempo que minha mãe falava acho que tinha mais umas dez ou onze. Nem sempre ficava feliz, esperar pela música mais lenta e nada acontecer era muito chato, mas quando chegava a casa, dormia e esquecia.
   A turma de amigos era sempre a mesma, formávamos uma espécie de “tribo da felicidade”, um happy-face compartilhado, se nem tudo estivesse bom, ainda assim era divertido. Nunca pensávamos que poderia acontecer algo fatal, não planejávamos o fim apenas os começos, queríamos vida e viver e era isso a sua maneira que acontecia, às vezes menos, em outras mais, mas voltávamos para casa para lembrar os fatos que julgávamos importantes e censurar parte deles aos pais, “editar a matéria” de um jeito mais inocente, o que sempre funcionava.
   Foi assim que descobri que o bicho-papão da infância fora promovido na adolescência para “estranho”: - “Não conversa com estranho”, “Não beija um estranho”. E assim, todos meus namorados e amigos um dia, pelo menos por algumas horas, me foram estranhos. Mais tarde aprendi que os únicos estranhos perigosos eram os “culpados” e, desde então, passei a temer os culpados. Os culpados que têm responsabilidade, mas se escondem na nomenclatura “fatalidade”, como se as tragédias, aquelas que podem ser evitadas, ainda assim fossem obra divina.
   Não conheci nenhuma das vítimas da tragédia de Santa Maria, mas é impossível não haver empatia, já fui adolescente, hoje sou mãe de alguém que um dia será adolescente e quando se perde um filho, não se perde somente o que se tem, se perde o que se é. 
   Nunca senti a fumaça negra, por isso hoje escrevo estas quaisquer linhas, mas minhas asas estão encolhidas e meu voo se faz palavra pequena, mesmo que somada a outras de tantas milhares de pessoas, porque estamos num mundo onde da tragédia se faz grande audiência, até a próxima notícia. Onde se trocam as palavras vida e futuro, por injustiça e fim.


Crônica publicada também nos jornais:
O DIA - Rio de Janeiro
Correio do Povo - Porto Alegre
A Razão - Santa Maria
NH - Novo Hamburgo
Diário Popular - Pelotas
E site do Correio Rural

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Circulo das bermudas

Fotografia de Ana Cecília Romeu

Diga-me como está meu amor no teu amor:
Frio, frio como a água do rio 
Ou quente como a água da fonte
Morno, morno como um beijo que se cala
e se acende,
caso queiras...
(da música: Frio, frio, -  Juan Luís Guerra)


   Verão no Brasil. No comércio uma situação que, se analisarmos friamente, apesar de parecer mero trocadilho, é dispare. Encontrei numa mesma loja de vestuário uma calça jeans no valor de R$ 60,00 e uma bermuda por R$ 160,00, a de se considerar que esta última deve ter uns 60% a menos de tecido do que a primeira.
   Recordei-me de quando morei em Rivera, cidade uruguaia fronteira com Sant’Ana do Livramento, Brasil; que havia uma sorveteria no verão, que na chegada do inverno, colocava à venda também casacos de lã. Na minha visão de criança aquilo parecia mágica. Era como se houvesse o verãoverno, uma nova estação que mesclava o frio e o calor.
   Ao observar esses meandros do comércio, no que tangem aos produtos sazonais, transportei-os para o aspecto pessoal sob a ótica dos relacionamentos de amor ou amizade, e da efemeridade dessas relações.
   Quem nunca teve um affaire de verão que jogue o primeiro guarda-sol! Mas para além dos contatos que podem ser compartilhados no calor do lazer ou do período de férias onde tudo parece assim tão perfeito..., o ‘volta às aulas’ ou ao trabalho, que caracteriza o nosso dia-a-dia, também está marcado pelos amores de estação.
   Por vezes, as pessoas se tornam como uma bermuda, própria apenas para o período mais quente; e quando o relacionamento esfria, caem em desuso como se fossem peça a ser estocada entre outras tantas num armário asfixiado por prateleiras cheias à espera de atenção.
   E o velho jeans, apesar de peça clássica, será inadequado na estação mais quente onde tudo o que é perecível parece ser a escolha certa: o sorvete a ser consumido rapidamente antes que se desfaça. E assim, o jeans se torna obsoleto e ‘asfixiante’ ao querer compromisso e frequência.
   As horas e suas intempéries nos mostrarão quem veio para permanecer em nossa vida em todos os climas. As cumplicidades que dividirão desde a capa de chuva até o óculos de sol.
   Os dias passam muito rápido para que se mensure pessoas e sentimentos via termômetro. Quem veio para ficar, sequer precisou de bússola pra nos encontrar, pois assim se fazem as inevitabilidades. E se somos de fato importantes ao outro, a nossa luz será compatível ao seu protetor solar: uma parceria que não causa danos à pele nem à alma.
   Sim, a vida é muito curta nos quatro tempos para não dizermos a quem amamos: você é a minha melhor calça jeans em todas as estações.


Blue Jean - David Bowie


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Adios muchacho

Fotografia da internet - sem referência autoral

Juan Gelman - grande poeta argentino faleceu na noite do dia 14 de janeiro. Para quem é apaixonado pela literatura platina, fica um vazio... O vazio da certeza de que não haverá novas letras dele; ainda que seus poemas não tenham tempo, muito menos fim. Em sua vida pessoal, Juan Gelman foi duramente perseguido pela sangrenta ditadura argentina, onde o homem se fez menos que nada.
   Aqui deixo a vocês fragmento de "El libro de los abrazos"- pag.229, de Eduardo Galeano onde relata isso; e "Epitafio", poema de Juan Gelman.

Gelman
- Eduardo Galeano -

   El poeta Juan Gelman escribe alzándose sobre sus propias ruinas, sobre su polvo y su basura.
   Los militares argentinos, cuyas atrocidades hubieran provocado a Hitler un incurable complejo de inferioridad, le pegaron donde más duele. En 1976, le secuestraron a los hijos. Se los llevaron en lugar de él. A la hija, Nora, la torturaron y la soltaron. Al hijo, Marcelo, y a su compañera, que estaba embarazada, los asesinaron y los desaparecieron.


Epitafio 
- Juan Gelman -

Un pájaro vivía en mí.
Una flor viajaba en mi sangre.
Mi corazón era un violín.

Quise o no quise. Pero a veces
me quisieron. También a mí
me alegraban: la primavera,
las manos juntas, lo feliz.

¡Digo que el hombre debe serlo!

Aquí yace un pájaro.
Una flor.
Un violín.