quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Des. caminhos entre pétalas e fulgurações

Fotografia de Ana Cecília Romeu


Rebentação
Carrego comigo esse orvalho no olhar
a plangência no peito
e os pés cheios de inundação.
Há um rio que me atravessa.
                                                                       
Fértil
A pétala sabe, levemente quando cai
que seu destino é ser porto
do solo que a espera.
 (poemas de Adri Aleixo)


Posfácio de minha autoria publicado no livro Des. caminhos, de Adri Aleixo:

Des. caminhos entre pétalas e fulgurações

   Há uma mulher sentada em imenso campo. Segura uma flor cor areia e carmim por entre os dedos e desfolha mundos ao sussurrar do vento: “bem me quer, mal me quer...” Pétala a pétala desenha caminhos em dia de céu azul. O sol sela cumplicidade ao cortejá-la sem cerimônias. Ele sabe serem dela as muitas eternidades, as que começam na palma de sua mão de traços finos, serenos e sutilmente assertivos, e que alçam voo elegante ao tocar em nuvens de algodão e cintilar matizes com luz própria, fertilizando gotas e sementes: o transcendente, que letra por letra despetala em vidas, as muitas que o olhar do leitor pode colher e replantar.
   Sinto a obra de Adri Aleixo, Des. caminhos, como se a poeta deslizasse delicadamente seus dedos ao despetalar rotas e reconstruir horizontes.
   A tessitura de seus poemas possui a marca do olhar feminino sobre tudo que a habita. Por vezes, os detalhes, ou apenas um; em outras, a flor inteira.
   Em Des. caminhos, Adri Aleixo conduz o leitor ofertando com carinho um fio de Ariadne, que longe de asfixiar ou amarrar, o envolve em guirlandas de letras que situam e instigam sua imaginação no perder-se de tantas trilhas. Dentro desse inusitado labirinto construído pelo traço longilíneo e profundo, a escritora permite ao leitor criar outra dimensão, que em neologismo meu chamei de imã-ginação: a capacidade de atrair outros mundos ao seu próprio.
   O onírico, o telúrico, as forças da natureza, o ser em toda sua plenitude abordados na voz franca de suas indagações existenciais ao deslindar suas relações como quem conversa com amigo íntimo, marcam o Des. caminhos. Não existe nesta obra bússola ou termômetro, nada é mensurável, mas são tantas as pétalas de aromas vários e sabores à fruta fresca da estação que audazes tocam o intangível, traçando pequenos ângulos sem perpendiculares, onde aparentemente não haveria frestas a passar.
   A obra de estreia dessa nova escritora nos propicia perder-se em Des. caminhos para, pouco a pouco, pétala a pétala, sermos conduzidos ao profundo, onde tudo se faz mais claro e sereno. Lá, algures entre sinapses e fagulhas; em terra firme ou no alto mar, nos deixando livres na escolha entre o mergulho ou a exposição da claridade nos poros.
   Nunca me fez tanto sentido a pequena frase que rabisquei em um canto de página qualquer, como quando o olhar poético de Adri Aleixo a atestou: a beleza é anterior ao que se vê. Assim, a poeta escreveu seus Des. caminhos, entre pétalas e fulgurações.

Informações sobre a autora e a obra, neste LINK.


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quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Das ruas de um Porto-artista aos Alegres

Porto Alegre e o rio Guaíba - fotografia de Ana Cecília Romeu

Mesmo que esteja sangrando de um golpe fatal,
quero uma estrela no instante final.
(Nico Nicolaiewsky, na música: Só cai quem voa.)


Nico Nicolaiewsky - músico, compositor, ator, cantor, humorista - foi mais cedo para a festa lá do céu, aos 56 anos, no dia 7 de fevereiro. Artista que deixava a todos mais alegres, uma alegria furtiva, mas que ajudava a viver como tudo que nos cria degraus para dentro, feito chá de mãe em dia febril. Uma irreverência desacompanhada, a que encontramos em pessoas impares, em quem deixa obras relevantes, em cenários que são somente um.

Fotografia de Raul Krebs

   Recordo-me que assisti pela primeira vez à comédia musical Tangos & Tragédias, que fazia em parceria com Hique Gomez, na praia de Capão da Canoa. Eu ainda era criança, e em esquetes eles apresentavam o mundo fictício da “Sbórnia” e seus personagens: Kraunus Sang e Maestro Plestkaya. Nunca tinha visto nada parecido. E cantavam: “Ana Cristina eu não gosto de você, tô amando loucamente a tua mãe”. Será que meu futuro namorado pensaria assim também? E ali todos os efeitos da arte nas sensações da menina que, depois adulta, assistindo ao mesmo espetáculo que teve vinte e oito temporadas, esta última incompleta, teria a mesma impressão, de que nada era perecível, pois sempre estreia. O Tangos & Tragédias tinha também uma versão em espanhol que foi apresentada na Argentina, Equador, Colômbia e Espanha. Em Portugal, foi eleito pelo público no Festival Internacional de Teatro de Almada, em 2003, como o melhor espetáculo; e de honra em 2004.
   Fiz o caminho inverso, conheci depois o trabalho anterior do Nico, Saracura, uma das bandas gaúchas de maior relevância de todos os tempos, inaugurada nos anos setenta.
   Mais atual e caminhando junto ao projeto do Tangos & Tragédias, seus álbuns solo, as entrevistas, os shows, o espetáculo Música de camelô: universo de artista plural que respondia com surpresas à plateia ávida pelo inusitado.
   E assim, Nico partiu em voo da mesma cidade em que nasceu: Porto Alegre. Capital espelho desse artista: em suas ruas uma certa melancolia feliz; ironia sutil e inteligente em seus passeios; meio preto e branco, outro tanto a cores, mas com nuances sem uso de papel celofane, tal e qual o Theatro São Pedro, tantas vezes palco dele mesmo e seu último. Uma timidez de quem não precisava mostrar para aparecer, das ruelas do Parcão à Redenção, dos recantos da Rua da Praia aos cantos do Bomfim, aqueles, os irreverentes ao ponto certo. Luz própria de quem assistia ao sol laranja-vermelho se deitar sobre o Rio Guaíba, momento em perspectiva de quem era e sempre será: porto, cais e quebradouro. Reflexo e imensidão do Porto até todos os Alegres, nós, a quem a sua arte fez despretensiosamente mais Felizes.
                                                                               
Crônica publicada também nos jornais: 
Jornal do Comércio – Porto Alegre / NH – Novo Hamburgo 

Feito picolé ao sol - Nico Nicolaiewsky (com imagens de Porto Alegre)

 

Tangos & Tragédias - Aquarela da Sbórnia

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Na próxima semana a postagem: Des. caminhos entre pétalas e fulgurações - um brinde com alguns poemas de Adri Aleixo e mais o posfácio de minha autoria publicado no livro Des. caminhos dessa que é uma grande poeta e amiga.