sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Fados, tangos e outros tantos


melodias por mar, terra e ar

Há um pedaço de solidão em cada música,
e uma nota de sol-lidão nos descompassos. 
(Ana Cecília Romeu)

Fotografia de Pedro Costa - em Zambujeira do Mar
   
   Ao pensar sobre o que motiva os compositores, poetas da música, a traçarem mensagens em forma de melodia me questionei sobre o que é o “fogo que arde sem se ver”, segundo Camões, tão imenso que deva ser revelado.
   Conhecer o fado de Portugal, é mais que conhecer uma música é traduzir Portugal. Quando por lá estive, me foi provado o que já diziam na máxima: “saudades é uma palavra que só existe no idioma português”. E assim fez-se a doce melancolia em forma de música, avisando a “bailarmos longe do mar”, e parece ele ser o grande responsável por todas presenças e ausências, da deriva e da navegação, por perder-se, encontrar-se e não encontrar, por desejarmos ser um anônimo errante, um pirata sem bandeira.
   No Uruguai, os Pampas, tipo de relevo com pouquíssimas depressões em campos extensos, onde se visualiza o sol cair na linha do horizonte, é o cenário da milonga. Parece que ninguém sabe cantar tão bem a solidão como os uruguaios. “Tenho uma solidão tamanha que posso organizá-la como uma procissão”, um dia disse Mário Benedetti. Assistir ao pôr-do-sol nesse país é uma experiência única de solidão compartilhada, aquela em que fizemos na presença da natureza, do cheiro da terra úmida, uma terra que causa bradicardia ao ouvirmos Ana Prada: “gota a gota passam os minutos caindo, o tempo corre até o mar, e eu vou terra adentro”.
   O tango, ritmo popularizado na Argentina, parece viver dos compassos e descompassos, do ar e da asfixia, nos bons ares de Buenos Aires, essa capital apaixonada que poderia estar em qualquer parte do planeta, mas está nesse país das “ganas”, dos desejos, que não só tem um grande jogador de futebol, Messi; um grande ator, Darín, (outras formas de se escrever poesia), mas também onde surgiu “El dia que me quieras”, é certo, pelas mãos de um uruguaio, Gardel, e de um brasileiro, Le Pera; não pela “mano de Diós” de Maradona. Essa dupla fez um gol de placa ao imortalizar a melodia e os versos: “Acaricia meu sono, o suave murmúrio do teu suspirar. Como ri a vida se os teus olhos negros me querem olhar.”
   E o Brasil, “gigante pela própria natureza”, parece misturar tudo, mar, terra e ar: a solidão dos Pampas gaúchos e também de todos os planaltos; o mar de um litoral a perder de vista e que dá saudades; e o ar e a falta dele numa Amazonas impar. E aqui nasceu o samba genuíno de quem ama muito, mas por vezes é benevolente em excesso ao aceitar os “Renans” e os “Calheiros”, mas que não perde a esperança quase nunca, como cantava Cartola: “bate outra vez com esperanças o meu coração pois já vai terminando o verão, enfim.”
   Saudades, solidão, desejos, esperança: sentimentos universais por mar, terra e ar. Nossa vida é toda mais bela quando ouvimos a música da alma, desses escritores da melodia e das letras que fazem do seu concerto sem holofotes, o de quem ouve. Como cantava Cazuza “faz parte do meu show”, esse show que quando sobe aos palcos passa a ser propriedade afetiva de todos nós.
   Pelas mãos dos poetas-gente dos fados, milongas, tangos, sambas, da terra, do além-mar e do além-fronteiras, conjugamos a paixão como sentados à mesa de um bar na nossa esquina, conversa aqui e ali em ‘acordes’ primeiros.  Dormir, para quê?

Dedico aos compositores de música-alma,
em especial a Agenor de Miranda Araújo Neto, o Cazuza.
(Rio de Janeiro – 1958/1990)




Faz parte do meu show
Composição: Cazuza e Renato Ladeira

Te pego na escola e encho a tua bola com todo o meu amor
Te levo pra festa e testo o teu sexo com ar de professor
Faço promessas malucas tão curtas quanto um sonho bom

Se eu te escondo a verdade, baby, é pra te proteger da solidão



Faz parte do meu show
Faz parte do meu show, meu amor

Confundo as tuas coxas com as de outras moças
Te mostro toda a dor
Te faço um filho
Te dou outra vida pra te mostrar quem sou
Vago na lua deserta das pedras do Arpoador
Digo 'alô' ao inimigo
Encontro um abrigo no peito do meu traidor

Faz parte do meu show
Faz parte do meu show, meu amor

Invento desculpas, provoco uma briga, digo que não estou
Vivo num 'clip' sem nexo
Um pierrot retrocesso
meio bossa nova e 'rock'n roll'

Faz parte do meu show
Faz parte do meu show, meu amor

Meu amor, meu amor, meu amor..


sábado, 2 de fevereiro de 2013

Saudades publicitárias em dois tempos

O Peixe - nanquim sobre papel couchet - de Ana Cecíla Romeu*

Foi divulgado pelas redes sociais a comemoração de dois dias: o dia das saudades - 30 de janeiro (como se essa velha senhora tivesse um dia certo para aparecer); e o dia do publicitário - 01 de fevereiro, minha profissão desde meus 17 anos. Compartilhei fragmentos que por aqui também deixo.


Primeiro tempo: saudades
- Último parágrafo de uma crônica ainda em construção -

Sal-dades

   Saudades se resolvem no cartão de crédito com saldo ilimitado, assim se viaja por ar, mar e terra; se ama, (re)ama e conjuga o verbo (a)mar, porque só no crédito incondicional temos mais tempero no prato do dia, aquele prato simples, o pronto que nada se espera, mas quando provamos, sentimos o gostinho de comida da mãe, - até se o arroz está um pouco empapado, ou o feijão grudou no fundo da panela -, mas a memória do paladar se transforma em saldo perene. E assim se cumprem as saudades: na presença da ausência que ainda se fará.



Segundo tempo: o publicitário

   Essa profissão nos faz descobrir que podemos sobreviver apenas com 4 horas de sono, e às vezes nenhuma; que podemos contar o mundo em 15 segundos; que criatividade não é obrigação, é matrimônio; que público-alvo é a pessoa por quem nos apaixonamos e a única que devemos ouvir sem questionar; que as críticas devem ser selecionadas e quase sempre ignoradas; que as críticas sempre virão, então existe a palavra "foco" - com esta namoramos, noivamos, casamos, mas principalmente temos que fazer amor; que discutir a relação com o cliente sempre é uma coisa boa; que podemos escrever a qualquer hora e sob quaisquer condições; e que os rabiscos nem sempre precisam de uma arte-final; que muitas vezes a Grande Ideia vem sem avisar, e precisamos estacionar o carro no acostamento, ou sair da piscina correndo para buscar o bloco de anotações no vestiário; que devemos ler de tudo, prosa, poesia, bula de remédio e anedota de marciano, mas principalmente, ler pessoas, são elas as que mais nos ensinam; que o serviço não é para ontem, é para anteontem; e por fim, descobrimos que o relógio é sempre pontual.
   Ser publicitário não é fácil, mas ninguém nos enganou, já sabíamos disso, pois amamos o difícil!


Prorrogação


   E tanto em comum nos dois tempos, e quanto das saudades e do nosso trabalho pontuam esse tempo, o relógio que cronometra e o que esquece; o tempo passado que teima em ser futuro; o impossível, a luta contra o impossível e todos os possíveis que podem se fazer numa Grande Ideia, num Grande Amor ou tudo aquilo que for digno de saudades e o que for digno do ofício; ou o ofício das saudades, ou as saudades do ofício. E o foco: no trabalho, a concentração; nas saudades, a desconcentração e o desconcerto. Arrumando a vida em fusos e confusos, o trabalho e os sentimentos; em inverso, os sentimentos com e sem trabalho, a vocação, o ofício, a profissão, os amores, as amizades, o que gostamos e o que evitamos, o que apagamos e o que salvamos, tudo que nos compõe nesse encaixe de peças que chamamos de vida, em dois tempos ou mais.


*Mostrei essa ilustração, O Peixe, em entrevista para meu segundo emprego. 
Guardo ela como um pedaço daquele tempo de muitas tentativas.