sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Sétima gaveta e recomeços

Fotografia de Ana Cecília Romeu

(...) não se esqueça que a felicidade é um sentimento simples, 
você pode encontrá-la e deixá-la ir embora por não perceber sua simplicidade.
Mário Quintana in Felicidade Realista


   O ser humano é um eterno insatisfeito. Dessas insatisfações, por vezes, curiosidades, explorações e (re)começos se ‘descobriu’ as Américas, por exemplo; e conheci dona Vera, vizinha querida com quem amplio os territórios da amizade.
   Recordo-me que a professora de francês me disse para nunca deixar a vida muito resolvida. (Ne laissez jamais votre vie très parfaite!). Em uma referência ao pequeno caos como fluxo de longevidade: andar pela contramão, jogar travesseiros por todos os lados. Mas a iconoclastia tem a fase da reconstrução, do recomeço, e isso dá trabalho imenso tal qual remontar quebra-cabeças de milhares de peças: o que mais nos edifica quase sempre não está na nossa linha de conforto.
   Talvez por isso se perceba tantos relacionamentos, de amor ou de amizade, sendo regidos por decreto: instantâneo do mando-obediência-estabilidade, do ‘felizes para sempre’ via corretor ortográfico, ou do ‘até que a tecla delete nos separe’. Já a democracia é trabalhosa, exige diálogo, negociação, diplomacia, é via de mão dupla.
   Há um tempo criei o que chamo de sétima gaveta. Um espaço imaginário onde coloco as tristezas, frustrações, perdas. E que fiquem por lá. Para ser forte e tentar ser feliz, é necessário enxergar o lado bom de tudo, e ele existe. Por vezes, a sétima gaveta abre involuntariamente soltando todos esses monstros: as pendências, as ausências, a pessoa que tirou a vírgula do “não, te amo”.  E não nos resta muito mais do que tentar desmitificar essas criaturas, as tornando mais parecidas com o brincalhão e pouco assustador Fantasma de Canterville, de Oscar Wilde.
   Optar pela luz não é ignorar a existência das sombras, até porque uma não sobrevive sem a outra, mas é tentar recompor-se para recomeçar, avançar; pois a felicidade, mais do que um processo, é uma opção.
   A tristeza é valorizada como forma de auto descobrimento, pré-requisito evolutivo. Não se enfatiza os momentos de felicidade como parte desse crescimento. Existe a ditadura escamoteada do sofrimento. A tristeza como imagem de profundidade, como se o contrário fosse bobo e superficial.
   Que bom seria que nunca nos esquecêssemos dos instantâneos mais felizes e das pessoas que contracenaram conosco: a plenitude pela partilha em forma de circulo aberto. Deveríamos ter uma parte do cérebro que impedisse apagar um olhar, aquele olhar..., a pequena eternidade que possibilita a continuidade da vida e seus recomeços.


La Paloma, Uruguay - Fotografia de Pedro Costa

[Retorno ao blog em 2014. Seguirei escrevendo aos jornais 
e divulgando essas publicações também pelo facebook.]

Um novo ano mais leve, com muita paz e saúde.
Se conseguirmos dois 'sim' para cada 'não', já estaremos no lucro nessa matemática-desafio que é a própria existência. Pois, que assim seja.
Agradeço a todos pela companhia que me fez e faz crescer muito.
Abraço do tamanho dos Pampas!

No litoral do Rio Grande do Sul.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Buck Rogers não previu o ciclone

Fotografia de Ana Cecília Romeu

Seriado televisivo famoso transmitido de 1979 a 1981, Buck Rogers foi um personagem criado originalmente para história em quadrinhos por Philip Francis Nowlan em 1928. A história trata do congelamento acidental de um militar astronauta nos anos 80 e o seu despertar no século 25, assumindo a função de patrulheiro. Na ficção, tempo em que espaçonaves, naves de caça e viagens interplanetárias são corriqueiras.
- 19 de setembro de 2012 - tive experiência que nem mesmo Buck Rogers poderia prever, muito menos, vivenciar. Devido ao ciclone extratropical que atingiu o Rio Grande do Sul, com formação a partir do Uruguai, e rajadas próximas à marca de 100 km/h em pontos isolados, boa parte de nós gaúchos de diversas localidades ficamos sem luz, sem internet e com linha telefônica deficitária; celular, quando se conseguia sinal, pegava ma... ma... mal.
Fiquei pensando na diferença entre a ficção idealizada e a realidade quanto a tempo e geografia proposto, quando um escritor-roteirista imagina uma época futura e a traduz numa obra, no caso de Buck Rogers, daqui a quatro séculos. E que, embora tudo pareça evoluído a partir do advento da internet e celular, ainda dependemos da luz como fonte de energia. Essas tecnologias, além dos benefícios, nos tornaram dependentes, visto que pouco ou quase nada podemos fazer em termos comerciais – e mesmo pessoais – sem o uso do que  dispomos na atualidade.
Neste momento, é provável que algum escritor esteja criando roteiro baseado em fatos que acontecerão no próximo século, com espaçonaves que se movimentam através do comando de voz ou de comando mental; pílulas coloridas que extinguirão a fome na Terra; alojamentos de único ambiente em poucos metros quadrados otimizados com tudo que uma família necessite: a mesa que se transforma em cama que se transforma em computador e por aí vai; mas talvez não se inclua na história que um ciclone ainda poderá nos remeter ao passado, a atemporalidade da vida sem luz e internet.
Escrever esta crônica em manuscrito à luz de velas, em pleno século 21, fez-me ter uma certeza: ainda temos muito que evoluir. Parecemos grandes, mas talvez sempre sejamos pequenos frente às forças da natureza.

Crônica publicada também nos jornais:
A Platéia (Sant'Ana do Livramento)
Diário Popular (Pelotas)
NH (Novo Hamburgo)
Diário de Cachoeirinha
Diário de Viamão


Buck Rogers - Trailer

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Nota sequencial para versos de outrora

Fotografia de Jorge Pimenta


O destino que se cumpra,
se o destino for
Eu apenas quero a flor
de uma última penumbra,
onde a sombra,
entendo eu,
é apenas o lugar
onde a luz
pode declarar-se
verdadeiramente.


Wilson Caritta Lopes

Todo vestido de preto, entrou no quarto de hotel. Dirigiu-se até uma bancada sem acender as luzes. Do lado direito das cortinas cor areia, um feixe recatado de luz pedia licença para lhe iluminar a silhueta e protocolar pequeno testemunho. Sobre a bancada, remexeu em pastas procurando dados entre os dedos, como quem colhia frutos de própria estação. Deletou pensamentos, buscou arquivos e o abraço dos amigos. Recordou-se de quando expelia arco-íris pelos poros, do sorriso fácil e que construía degraus de nuvens entre os versos. Que um dia amou e no outro também.

[Em pedra-ferro, cravada à beira do abismo, entre o temporal e o sol laranja, rezava a escritura:

é esta a minha terra,
o lado norte dos versos,
um país, uma palavra
toda a verdade.
terra branca
letra e poema de tantos segredos
dentro e fora de mim,
a semear braços, horizontes de anis
e outras moradas
onde escrevo,
aplaino rimas
e reinvento silêncios

De entre as pastas, selecionou apenas duas. Saúde e justiça são irmãs da mesma verdade e parceiras da mesma dor.

[Lenda, Poemas em Autoplágio ou apenas imaginação. Cravada à pedra-ferro, rezava a escritura:

o poema corre-me com a água
do canto
lava leve lembra
é este o som é este o sentido
porque as estrelas de dedos longos sempre tocam
as portas e os girassóis
que cabem no mundo:

é aqui, no verso,
que sou todos os homens
é aqui, no verso,
que me esqueço do tempo
é aqui, no verso,
que escavo o fogo.

eis-me o verso.

Com semblante seguro, passou pelo umbral carregando as pastas em baixo do braço esquerdo e mais duas gotas de certeza: homens de bem e poesia jamais falecem a causa da senhora realidade.

Foi quando o poeta tocou a primeira nota sequencial para seus versos e ela espirrava como a alma.

Em memória do poeta Wilson Caritta Lopes
(1964 – 2013)


Jorge Pimenta & Ana Cecília Romeu

The Cinematic Orchestra - To build a home


quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Sobre o nada

Fotografia de Pedro Costa - Reserva ecológica do Taim - RS

Procuro a voz do sereno
Nesses versos que componho;
Não sou grande, nem pequeno:
Meu tamanho é do meu sonho!
(fragmento de Milonga de andar caminhos, de Marcelo Dávila).


   Hoje decidi escrever sobre o nada. Nada não é o algarismo 1, nem sua escala negativa, o -1. Nada é como se fosse o zero que apesar de ser um número, coisa alguma representa. Mas como tudo é relativo, um zero à esquerda é o próprio número; e à direita, outro número.
   Recordo que quando cursei a oficina de contos do escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, houve exercício literário em que precisávamos descrever um molho de chaves caindo de uma mesa e deveríamos usar o máximo de palavras para essa única cena que, em tempo real, não dura mais que alguns segundos. Maravilhoso exercício de forma, tecer letras em urdidura de um quase-nada que me rendeu em torno de duas laudas de... quase-nada.
   Por falar em quase-nada, fiquei pensando em quantas amizades de anos e votos de amores eternos terminam por quase-nada. Porque um disse tudo sobre nada; e o outro disse nada sobre tudo, gerando desproporções de algarismos sensoriais para além do número zero, ao criar vácuos de linguagem e abismos sem passagem. Prenúncio de fim até a fossilização do sentimento que talvez seja redescoberto na escavação arqueológica do próximo relacionamento, e dimensionado com cuidado em carbono-14 para não haver repetições dos ‘quase’ definitivos.


Fotografia de Pedro Costa - Reserva ecológica do Taim - RS
   
   O nada também pode ser um silêncio, a ausência de palavras, a ausência de carinho, a ausência em si. É quando deixamos de ser plenos porque sentimos falta, e o que sobra não sustenta a existência. As reticências mudas abrem inúmeras interpretações: não existe palavra mais cruel do que a que não é dita. Não existe maior tortura do que um carinho esperado que não chega.
   O nada pode ser a falta de ousadia, de projetos, de objetivos. Se não damos um passo à frente, ou mesmo um passo atrás para dar dois à frente, estamos estagnados. É quando assistimos a nossa vida sem perceber que todos os capítulos são iguais: o roteiro é o mesmo da novela anterior, repleto de clichês e bordões.
   O verdadeiro preencher do ser talvez esteja numa pequena soma aqui e ali de realizações quase imperceptíveis, quando tomamos a decisão de sermos mais que nada, de fazer valer os números do dia: minutos, segundos. Ainda que partamos sempre da mesma hora zero, nossa vida valerá mais que nada sem despender de calculadora científica para essa grande matemática-desafio que é a própria existência.
   Somos do tamanho dos nossos sonhos, e isso é mais do que nada: é tudo que podemos.

Crônica também publicada nos jornais: 
NH (Novo Hamburgo)
Diário de Cachoeirinha/Sinos
Correio de Gravataí/Sinos

Jorge Drexler - Todo se transforma

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   Não irei anunciar pausa, porque cheguei a conclusão de que a vida é assim mesmo: uma sucessão de coisas imprevisíveis. As pausas imaginadas com duração de meses, podem se transformar em dias; o adeus, apenas um breve tchau, para na manhã seguinte se compartilhar o café. Então deixo a todos, como diz meu amigo Felisberto Júnior: bom dia, boa tarde, boa noite! Pelas dúvidas, mas, principalmente, pelas certezas! 

Em Punta Ballena, Uruguay

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Ser humano, eis a questão

   
Fotografia de Pedro Costa


Pensemos nos bichinhos como iguais a nós. Cada ser vivo é uma bênção sobre o mundo 
e deve ser cuidado, seja ele gente, animal, ou vegetal.
(Isabel Rodrigues)


   Uma coisa que sempre me incomodou é o desrespeito com os animais. Jamais entenderei o que motiva o dito ser humano a cometer crimes, seções de torturas e atrocidades, e o abandono de seres tão indefesos. Difícil ser humanista e ao mesmo tempo acreditar no ser humano.
   Retornando a casa, dia muito chuvoso e frio, testemunhei uma cena: um cachorro com dificuldade para caminhar atravessava a rua. Parei o carro, e percebi que uma senhora o esperava do outro lado. Disse-me ela que era um cão que perambulava pela região há dias, e decidiu por adotá-lo e, exatamente no momento em que eu passava, ela o atraia para dentro de sua casa. Ainda assisti aos dois entrando pelo portão: novo lar de um; antigo lar de outro.
   Se existe um prazo de validade para a felicidade de se presenciar uma cena assim, penso que serei feliz por alguns dias.
  



   Gestos como esse nos dão uma espécie de sobrevida de ânimo frente ao ceticismo que por vezes instala-se de forma inevitável, tendo em vista tudo o que se presencia, ou se fica sabendo: crimes contra os animais que são crimes contra nossa própria espécie.
   Pessoas que não valorizam os animais não valorizam outras pessoas. Quem interage em perfeita harmonia e respeito com toda a natureza é mais altruísta e evoluído, consegue distinguir a essência dos sentimentos e das relações, e entregar-se ao código de um idioma reconhecido em todo Universo.
   Ser humano transcende o estar humano, é quando consideramos o outro como uma vida também, em outro corpo e alma. Alguém a quem devemos consideração seja quem for, e muito dessa postura passa pela questão de termos o mesmo respeito pelos outros seres vivos que diariamente nos trazem lições preciosas.
   Quando o gato faz seu assédio felino, nem sempre seu pratinho está vazio, por vezes ele só quer carinho. Quando o cachorro abana o rabo e sorri, porque algo na boca dele modifica e parece um sorriso, nem desconfiem, é sorriso mesmo. Mas quantos seres humanos estão prontos para pedir ou dar carinho e sorrirem uns para os outros?
   Ser humano, eis a questão. Temos de honrar todos os dias o fato de termos nascido com o que se chama de "raciocínio". Que ele sirva então para considerarmos todas as vidas, não somente a nossa, como algo pleno. Afinal, quem não respeita a vida, não merece dela o respeito, simples assim.




*Crônica publicada também nos jornais:
Jornal do Comércio (Porto Alegre)
VS (São Leopoldo)
Diário Popular (Pelotas)
NH (Novo Hamburgo)



**A todos os bichinhos, em especial ao Lito, meu filho-gato. 
Com ele aprendi o "miadês", idioma que me ensinou a ser mais humana.
(02-02-2000/27-08-2013)

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Aviso: 
Neste momento, terei de fazer uma pausa. Visitarei a todos que vierem nesta postagem, e seguirei contato via facebook, embora com menos frequência, onde também continuarei postando meus textos. Até o retorno! Grande abraço!
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sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Às três horas

Fotografia de Pedro Costa
Aos 'desaparecidos' pela ditadura militar.


Lustre escuro
estrelas opacas
regurgitam hélices
líquido
arrebenta e esvazia
coral e ouriços

Ele desapareceu às três horas.

Ninguém mais ouviu suas nuvens
sentiu perfume dos tantos
dos prantos
acariciou suas digitais

Ele desapareceu às três horas.

des...
apare
o
Céu
às três

Pálpebras cerradas
suas digitais
amaciou coral
ouriços
no mar respingou
líquido se fez pó
Desapareceu,
e foi às três horas.

Nadie más ha visto a su cuerpo
sus nubes
sus llantos
Desapareció
a las tres.

Sentiu perfume dos tantos
dos prantos
tocou em estrelas:
lustres-ilustres-escuras.

Às três horas,
desapareceu...


- Ana Cecília Romeu -

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

1 grau: Montevideo - New York

Fotografias de Pedro Costa

- Histórias de Viagem - Episódio 2 -

   21 de julho, 2013 - domingo - Cidade de Montevidéu, capital do Uruguai.

   Ainda pela manhã, próximo ao meio-dia e um frio de 1 grau centígrado com sensação térmica de bem menos..., o suficiente para doer os dentes ao sorrir. Nuvens escuras, um vento forte vindo do Mar del Plata (Rio da Prata – que emoldura toda cidade).
   Montevidéu é uma capital peculiar, com um centro de arquitetura clássica em art-deco e art-noveau, convivendo com prédios mais modernos e ecléticos. Apesar de concentrar praticamente a metade da população de todo o país, incluindo a região metropolitana, conserva recantos de cidade do interior, por vezes; e um centro de grande cidade, que bem pode lembrar Nova Iorque, mas... será que não é?






  Caminhando na principal avenida, a 18 de Julio, observei que algumas quadras estavam fechadas ao trânsito. Havia uma grua com luz, fumaça de gelo seco, luz, câmera..., ación? Mas o que é isso?
   Sim, era o que eu pensava, um set de filmagens em plena 18 de Julio. Coisa possível nesta cidade que é grande, comporta o status de capital, mas ainda assim não fica em caos tendo algumas quadras fechadas. Não, se isso for num domingo de 1 grau centígrado.




  

   Soubemos que se tratava das gravações de uma propaganda do café de uma indústria Suíça muito conhecida. Qualquer publicitário adoraria acompanhar essas filmagens, e por acaso, eu estava lá.
   Ainda nos inteiramos que têm sido realizados com certa frequência comerciais de grandes empresas mundiais de diversos segmentos ambientados no centro de Montevidéu. Recentemente, passa um no Brasil de marca famosa de calçados esportivos que foi feito na Plaza Independencia.
   Entrando nas duas quadras fechadas ao trânsito, mas não aos pedestres curiosos, parecia que se estava caminhando mesmo em Nova Iorque. As placas das ruas, dos carros e outras das calçadas foram trocadas por simulações norte-americanas.



   Quietinhos mas nem tanto, observamos: a cena consistia na filmagem do casal protagonista no trânsito movimentado. Ao ouvir o chamado do diretor, os mesmos figurantes atravessavam a avenida, os automóveis davam a partida, o guarda de trânsito fazia os sinais. Tudo do mesmo jeito nas várias tomadas que acompanhamos. E algumas curiosidades: os figurantes usavam roupas de meia-estação, dispensa dizer que não era tarefa fácil naquele frio todo. Além disso, o carro dos protagonistas não pegou num primeiro momento, para riso geral.

Figurantes na pausa das gravações.
Automóvel com os protagonistas.

   
   A sensação foi de estar em Nova Iorque ou qualquer outra grande cidade dos Estados Unidos. O cuidado com os detalhes na produção, por instantes, me fez pensar em ter viajado para um país e chegado em outro. Quase uma viagem dentro de outra. Sensação quebrada pela conversa aqui e ali com os simpáticos figurantes uruguaios. Nesse momento, voltei ao Uruguai, ainda que ali tudo parecesse ter sotaque mais longínquo, tínhamos o vento charrua, o sorriso e a disposição de quem não tem medo do frio. E a certeza: Montevidéu é uma capital tão especial que nela cabe o mundo.


Dedico ao Pedro, meu companheiro de todas viagens.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Clichê celeste

Fotografia de Ana Cecília Romeu - Atlántida, Uruguay

E até eu, que fora destinada 
da palavra divina a ser a assassina, 
calei-me, quase com devoção, 
para poder prolongar esse instante abençoado.
(fragmento de Treze versos, de Anna Akhmatova)



   Seus olhos azuis e o falar doce e explicativo a extasiaram por minutos. Não contou o tempo nem o que aconteceu, porque qualquer palavra para descrever pareceria clichê: comparar seus olhos a um oceano infinito de onde saíam ondas suaves cor lilás, agarrando-lhe dos braços até o ventre.


Ana Prada - Dulzura distante

Na próxima postagem, o segundo episódio das histórias de viagem.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Banho à francesa

Paris, 2002 - fotografias ainda em câmera analógica.

   Histórias de Viagem - episódio 1 -

      Paris, 2002.

   Minha professora de francês já havia me ensinado o verbo “débrouiller”, o famoso “se virar”, ou ainda o mais famoso: “jeitinho brasileiro”. E que em algum momento na França eu teria que dar esse jeitinho, considerando que tinha apenas um semestre de estudo em língua francesa. Isso estava me tirando o sono tanto quanto o medo de subir no avião.
   E não foi, mesmo, que precisei usar o tal jeitinho?
   Finalmente eu e o marido em Paris – Cidade Luz! Uh lá lá! Desde meus nove anos sonhava em conhecê-la, quando a professora de Educação Artística projetou slides da Notre Dame, Museu do Louvre e de muitos dos encantos da capital francesa. Minha decisão de menina: vou conhecer Paris!

Museu do Louvre
   2002 - época em que fomos pela primeira vez, não havia ainda a difusão de sites de reservas de hotéis, que geralmente são confiáveis, onde se procura ofertas adequadas ao bolso, localização e tipo de dormitório pretendido. Tínhamos, então, o endereço de uma pousada recomendada por uma amiga, localizada não muito distante da estação ferroviária, e com disponibilidade de leito.
   Chegando lá, um prédio muito antigo, mas reformado. Fomos até a recepção e tentei arriscar uma das poucas frases que sabia em francês, mas esqueci..., então: “Vous parlez espagnol?” – foi o que me ocorreu, se a moça da recepção falava espanhol, no que me respondeu: “poquito”. E assim “hablamos”.
   Descobrimos que havia duas opções de dormitório: com banheiro apenas com a privada; ou com banheiro apenas com a ducha. Não perguntem por que... Optamos pelo banheiro com a ducha.
   Pelo menos tudo era limpinho e acolhedor, mas na hora do banho... Olhei para a ducha e mais abaixo o botão do registro. Torci para um lado e outro. Mas como se liga isso? Fazia um frio de menos de 10 graus, e eu desafiando meu pobre Q.I. cansado da viagem de trem. Foi quando apertei o tal botão, coloquei a mão para testar antes de entrar: a água quentinha, maravilha! Entrei no box, e a água parou... Como assim, a água parou? – Peeeeeeeeedrrrrrrrooooo, me salva! – gritei ao marido.
   Ficamos os dois tentando entender aquilo tudo, até que ele apertou novamente o tal botão e veio a água, mas percebemos que o botãozinho começava a voltar para frente até que a água parava. E ali estávamos numa nova descoberta: um banho com temporizador que mais parecia uma torneira de shopping center. Mas detalhe: a água escorria por no máximo 30 segundos. What?!
   Então entrou o famoso “jeitinho brasileiro”. Descobri que se ficasse de costas, poderia pressionar o botão com o tronco e obter uma água contínua por muitos minutos. E se ficasse de frente, poderia apertar com uma das mãos o tal botão e passar o sabonete com a outra..., mas uma vez vacilando, logo a água parava.
   E assim, foi meu primeiro banho à francesa: inesquecível e sinistro.

Eis aqui a "prova do crime" - o banho à francesa!
   No final da noite, salmão, queijo brie e vinho Beaujolais.
   Na manhã seguinte, depois de um ‘petit déjeuner’ com mini pão e xicrinha de café frio, fraco e... Para quem está acostumada ao café da manhã gaúcho? Nem pensar, tchê! Solução: novo hotel. Mas isso é outra história...

Café da manhã... e minha insatisfação...


... por sorte, em Paris sempre se dá um jeitinho!

Novas viagens......................................................

   Pessoal, vou intercalar as crônicas de assuntos diversos que publico em jornais do país e já venho postando aqui no blog; com histórias verídicas de viagens, que não tem a pretensão de serem dicas, mas curiosidades bem-humoradas e algumas até assustadoras...
   Senti a necessidade de registrar o que nem sempre os turistas contam, ou o que nem sempre contam aos turistas.
   Relatos ainda em preparo: o fantasma de Veneza; Hallstat - a cidade encantada na região dos Lagos, Áustria; o dia que comprei um bumbum, em Praga, na República Tcheca; abraço brasileiro em Nice, França; Hungria para inglês ver: uma conversa esquisita com o clone de John Lennon; first class, em Heidelberg, Alemanha; a senhorinha do metrô de Paris - visão ou fato?; o choro em Fátima, Portugal; dolce far niente, em Camogli, Itália; flores roubadas ao mestre Wilde, no cemitério Père Lachaise, em Paris; o inusitado arco-íris no Cabo da Roca; a mística de Santiago de Compostela e o que nem sempre se conta sobre o caminho...; brasileiras em Gênova - um almoço inusitado; a Casa da Águia, no Uruguai; o dia da devolução, em Niterói, Rio de Janeiro; Pampas do Rio Grande do Sul e mais sobre a excêntrica capital porteña de Buenos Aires.
   Como o tempo é curto para quem escreve, e também para quem lê, seguirei postando com intervalo maior entre as publicações como já venho fazendo, mas agora intercalando as crônicas com as histórias de viagens.

   E fica aqui o convite para viajarem comigo, o que não significa dizer que vai ser uma coisa necessariamente segura...

"A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa,
Como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo.
Não importa que os compromissos, as obrigações, estejam ali...
Chegamos de muito longe, de alma aberta e o coração cantando"
- Mário Quintana -
(fotografia- no hotel Laje de Pedra, em Canela - RS, 5 de maio de 2013)