quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Morrissey casou-se com Wilde

   
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   Morrisey, vocalista da extinta banda inglesa dos anos 80 The Smiths, esteve em turnê recente no Brasil. As letras das músicas são um retrato vivo dos anseios de toda uma geração, de uma época em que se compreendeu, talvez mais que em outras, a mistura da felicidade com a tristeza.
   Foi em uma das inúmeras entrevistas do Morrissey que soube da obra de Oscar Wilde - escritor irlandês do século 19 - quem mais li desde minha adolescência, o que me provou a interação entre as artes: referências literárias a partir da música. E percebi o casamento deles, um sacramento oculto, elo de décadas que ainda faz sentido a um tanto de pessoas. O exercício da leitura da ironia, do perfume da neblina quando nada se enxerga e o “significado da dor e de toda sua beleza”.
   Então surgiu o hit “The boy with the thorn in his side”, um olhar sobre as próprias dores fazendo-as parecer cândidas ao tratar com a franqueza de um adolescente o desassossego que pode ser o de qualquer um. E, assim, escamoteava o óbvio, num ritmo de aparente ingenuidade que envolvia os jovens da época, pois vanguarda.   
   As letras de Morrissey ainda conferem sentido a todos os garotos atormentados na ânsia por si mesmo. Desta forma, continuou o canto de Wilde sem assumir a viuvez. Parceiro sem nostalgia, pois o escritor está ao seu lado conjugado no tempo presente.
   Ao passo que Oscar Wilde desfilava altivo uma elegante e refinada ironia como ninguém, sem precisar se valer de destilar veneno sobre os abutres vorazes. Comia-os pelas bordas com serenidade, como quem dispõe de tempo a degustar finas iguarias. Transferiu, assim, à escrita sua capacidade de excelente orador que era, como se suas letras fossem extensão de sua fala, numa tão rica dramaturgia de vida que acabou por fazê-lo sujeito na transcendência de si mesmo: um ator que finge ser insipiente à própria persona, dando-lhe, desta forma, acréscimo. Não passava de um autêntico Fantasma de Canterville ao almejar o impacto enquanto fulgurava sedução.
   Por outro lado, ampliava o significado de suas palavras; o não dito, porém escrito, o definiu de tal forma que se reinventou solitariamente. O que escrevia era sempre a verdade fazendo-se passar por uma incerteza que pretendia se passar como segunda verdade para ocultar ser única. Eis sua maior ruína, e seu melhor mérito: tornar-se francamente palpável a quem o decifrasse. Porém a revelação seria possível apenas como fruto da elaboração ativa do leitor, seja este no papel de censor ou cúmplice. Permitia esse maniqueísmo como resultado, e se valia dele ao envolver com a argúcia da áspide a bailar. Assim, despertou curiosidade sobre sua vida, tão ou mais do que por sua obra. E, definitivamente, deixou sua assinatura: ninguém imitou Oscar Wilde tão bem como ele mesmo.
   O escritor não usava hieróglifos. No cenário - entre carruagens, leques, fraques e vestidos longos - tecia pontos entre os fios, permitindo um descer redondo que envolvia o leitor da época, fazendo parecer longe o que estava a centímetros; e enfeitiça ainda hoje quem se deixa cair em suas guirlandas literárias, fazendo parecer próximo o que não se enxerga sem lentes de aumento.
   Morrissey acenou aos quatro cantos sobre o pós-modernismo, profetizou que pouco ou nada novo seria criado depois dos anos 80. Confesso que penso o mesmo, mas ainda tenho esperança no encanto de um novo garoto atormentado a parecer brincar com a vida enquanto exalta a morte, e menosprezar a morte como condição de vida. “Se eu morrer, morri” – afirma Morrissey; enquanto Wilde está mais vivo do que nunca. 

- Ana Cecília Romeu -