quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Nostálgico


   Sempre que ouvia letra da música do cantor e poeta brasileiro Cazuza: "Meus heróis morreram de overdose...", Astrogildo tinha certeza de uma coisa: "Meus heróis morreram de tuberculose". Oscar Wilde e Casemiro de Abreu, dois deles, mas poderia citar mais.
  Astrogildo vivia assim, calça risca de giz, sapato brilhoso e pensando em como se sentia deslocado naquele mundo: internet, celular, carros automáticos, sem falar na tal máquina doméstica que fazia pães, era só colocar os ingredientes e "plin" depois "plun" e estava pronto. Que sem graça.
  Na sua vida amorosa, flores para a amada, canções no ouvido e muito tango. Tango? Mas o que é isso? Perguntou Tininha, filha do vizinho. Se assustou com aquilo, apesar de Astrogildo ser bonitinho. Foi embora.
  — Astro, meu bem, isso é macumba, reza, calma, carma, o quê? — disse Tininha
   Depois disso, nunca mais a viu.
Mas recordava dos discos do pai. Carlos Gardel, seu favorito. Ainda defendia por ser uruguaio:
  — Não era argentino, não! Tem até museu lá em Tacuarembó provando isso! — desafiava Astrogildo
  Pedia licença, desculpas e falava muitas vezes o obrigado, até sem motivo, mas ia marcando presença. Foi assim atraindo as moças mais recatadas, e as sem recato algum, que viam nele um desafio.
 Muito estudioso, bom nas letras e galante nas palavras. Excelente no discurso, foi escolhido por brincadeira dos colegas, como orador da turma. Pois, sorte a dele. Apresentação impecável, suscinta, garbosa, vocabulário trabalhado. Escrevera o tal discurso em manuscrito, e ainda por teimosia em caneta verde, como Pablo Neruda; mas muito míope, de noite não conseguia ler nada. Mas mesmo assim, se inquietava com o computador: letras pretas em tela branca, muito impessoal.
  Mas anos passando, e Astrogildo se atualizando, já lia livros da geração beatnik e ouvia rock dos anos 70, isso já no século 21. Se lembrava com saudosismo do seriado de Buck Rogers, do cara que tinha sido congelado e depois acordava nessa época. Assim vivia Astrogildo, contemplando o passado e se esquivando do presente.
  Certa vez foi convidado por namorada, para festa:
  — É reunião dançante — disse a namorada para convecê-lo a ir
  — Claro que vou! — disse Astrogildo.
 Mas chegando lá, teve a própria visão do inferno: purgatório, diabinhos, música muito alta, do tipo "tuc-tuc", gente fumando de tudo, se sacudindo, gritando, um horror! Mas Astrogildo não podia sair dali, muito apaixonado pela moça. Ela toda certinha, bonita, alta, magra, mas gostava daquele inferno. Fazer o quê? Para fugir daquilo tudo, Astrogildo foi no bar e pediu um drink
  — O quê? — perguntou o bar man
  — Um drink, por favor — falou Astrogildo
  — O quê? — perguntou novamente o barman
  — Um drink. Drink, entendeu?
  — Um o quê? Pinki, Dinki, Doo? Mas isso não é um desenho animado infantil? — disse o barman
  Tudo bem, Astrogildo ficou num canto, calado, pensativo, sem palavras, sem ouvidos e sem bebida, apenas observando namorada que dançava com duas amigas.
  Pensou mais um pouco, foi até ela, agarrou-lhe a cintura, puxando-a:
  — Posso dar-lhe um beijo? — disse alto no ouvido da moça
  — O quê? — disse a namorada.

14 comentários:

  1. Cecília,
    apesar de ser um conto de ficção, tenho observado que muitas pessoas vivem nessa atemporalidade. Este é um personagem muito presente no dia a dia. Abraços.

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  2. Eu concordo que Gardel é uruguaio... hehehehehehehe, que máquina de fazer pão é um ítem totalmente dispensável, que carro automático me soa estranho (já que eu gosto de dominar a máquina, não, o contrário!), Oscar Wilde e Casemiro de Abreu são realmente ótimos, mas por outro lado não dispenso internet, notebook, redes sociais, smartphone e os trocentos gadgets que conseguir utilizar... rsssss
    Vivas à modernindade, mas obviamente, sem esquecer o caminho que nos trouxe até aqui! \o/

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  3. Uruguaio ou argentino? Pior é no Brasil, quando vamos trocar de carro e o vendedor diz "esse carro é automático, tem direção, vidro elétrico, completo". Caramba, mas todo carro tem direção!?!?! Ah, o sujeito quer dizer hidráulica. Nada a ver com o Tango Instrumental que é bem melhor. E ainda por cima eu tive uma vizinha chamada Tininha, quando era "criança pequena" lá em Barbacena...ops, lá no Rio de Janeiro.
    Agora, o final é trágico! Pior que isso, só mesmo encontrando uma dançarina contemporânea arriscando requebrados de funk carioca...rsrs
    E só pra completar: Mick Jagger e Keith Richards estão cumprindo hora extra aqui na Terra, apesar de todas overdoses.
    Vou tomar uma dose de pedras rolantes e volto.
    Beijo e boa tarde.

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  4. Ah, adorei. Existem muitas pessoas que vivem do passado e ignoram o presente. O personagem que você criou - desde o próprio nome - já deixa muito claro isso. É uma bela metáfora para pessoas assim, que como Astrogildo, vivem no passado.

    E o início da história também é muito bom. Astrogildo ainda ouve Cazuza, coisa que tbm faço de vez em quando, hehehe. Mas isso é totalmente compreensível se pensarmos na má qualidade musical de hoje...

    Parabéns por esse conto. Certamente, um dos melhores que você já fez.

    Abraços!!

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  5. Hahahahahahahahaha esse Astrogildo ficou na idade média, hahahahahaha, hoje em dia as coisas estão malucas, hahahaha, no meu tempo já não se pedia beijos, só se a menina fosse dura na queda, hahahahahaha, mas musica tuc tuc nunguém merece né? Hahahahaha, Mais um belo texto!

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  6. Lindo texto,lembrar tantas coisas "antigas",mas que deixaram saudade.Sou do tempo da massa feita em casa(amassar,esticar,cortar,secar com farinha dois tres dias),sou do tempo da reunião dançante.Tempo que a educação,o muito obrigada eream usados rotineiramente! Como faz falta isso:educação hoje.Mas não vivo sem algumas modernidades.Estou tentando desfazer-me do celular

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  7. Embora eu adore e ame com tdas as minhas forças as novidades da minha geração, tenho u "q" do teu personagem, vivo um pouco com um passado que não vivi, adoro coisas antigas que revelam um pouco de um povo e costumes que não presenciei, mas não dá para fik parado no tempo né...Viva a Internet, Viva a tecnologia...Ô Céus ! O que seria do homem sem ela ? Belo post, adoro ler teus contos qrida... =D

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  8. Sabe que quando eu era mais novo, me sentia exatamente assim. Não com relação à tecnologia, mas com todo o resto. E volta e meia algo acontece para me fazer lembrar desses tempos.
    O mundo está acelerando, e tem gente que realmente perde do bonde da história.
    Mais um conto muito divertido. :)

    P.S.: Obrigado pelos elogios no Blog. Sim, eu gosto de "fazer a minha parte". E, no meio de tanto lixo que encontramos por aí, vale a pena dar uma força para aquelas pessoas que sabem o que escrevem, e que tem o que dizer.
    Só a Rê Lopes que acho que foi engano, já que aquela é minha irmã, de BH. rs

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  9. Sandro,
    sobre a "Rê Lopes" aconteceu uma coincidência tremenda!!! rsrsrsrs
    Minha melhor amiga usa o perfil "Rê Lopes" e o nome dela é Renata Lopes!!!
    Mas ela é aqui do RS!!! Muito engraçado!!!
    Quanto ao seu blog, o seguirei informalmente. Penso mesmo que você escreve muito bem, com assuntos interessantes. Visitarei seu espaço com frequencia. Deste também o exemplo de ser um excelente blogueiro por sua atitude.
    Muito obrigada!

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  10. kkkkkkkkkkkkkkkkkkkk coitado...na ocasião, ele estava mais perdido do que cego em tiroteio. Acho que as modernidades chegam até nós e temos que acompanha-las, senão, dá nisso. Mas, claro...sempre lembrando com doce saudade do que fica pra trás. Ah vai, n dá pra esquecer o que nos fazia felizes há um tempo atrás, né? hehehehe

    Beijos, minha floooooooor!

    Te espero lá no blog ;)

    www.nicellealmeida.blogspot.com

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  11. Eu to com Astrogildo...o passado era bem melhor!Obrigada por passar no Blog,e deixar teu comentário.Fiquei contente com a menção Casemiro de Abreu.Meu texto é tão simples,é mais um desabafo,para lembrar um grande escritor.
    Muito obrigada!
    Estou no seu rastro,querida.Que bom que fui ao Facebook e encontrei mais uma grande mulher:você!
    Beijão

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  12. Coitadinho do Astrogildo!!! Acho que ele é assim como eu, um saudosista. Bem, eu acredito que o Carlos Gardel tenha se 'transformado' em um legítimo argentino, apesar da suposta origem uruguaia. Mas isso é tão controverso, papo para horas no botequim da esquina! Que eu gosto de Carlos Gardel! Pô, o Oscar Wilde e tantos outros que eu gosto foram dessa pra melhor por causa da tuberculose, que coisa! Pior foi o Edgar Allan Poe que morreu de tanto beber e sozinho na calçada e o Bono Scott que se afogou no próprio vômito O_O Sniff, sniff! Agora, poor Astrogildo, obrigado a entrar na moda do tuc-tuc para agradar a namorada que nem dá a mínima para ele na balada...

    Adoro seus contos!

    T.S. Frank
    www.cafequenteesherlock.blogspot.com

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  13. Sou meio Astrogildo também.. kk!
    Porém ainda não consigue me livrar da internet!
    Gostei bastante do conto!
    Beijos

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  14. Nostálgico? Alguém me chamou? rsrsrs

    Apesar de ser um tanto saudosista, ao contrário do Astrogildo eu ainda estou um pouco mais avançado. Vou tentando me adaptar às cada vez mais recentes tecnologias. Mas no que se refere à essas casas de shows barulhentas, eu tô fora. Prefiro um programa mais íntimo e sossegado, onde possamos conversar sem ter que berrar nem se estressar. Além do mais, no gosto musical eu também parei no tempo, prefiro escutar minhas velharias do que as coisas de hoje. rsrs

    Grande beijo Cissa, parabéns por mais um conto daqueles que a gente lê com gosto.

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