segunda-feira, 29 de novembro de 2010

SÉRIE "O" - Conto 1 : O invejoso

   Dizem que o cara era tão invejoso, que quando o filho passou no vestibular da Federal, de pronto deu um carro para ele..., um fusca 1972. Precisava três homens fortes para empurrá-lo em manhãs quentes, eu disse, manhãs quentes. No inverno, o fusca piscava na garagem como quem diz: — Tô na CTI. Tô na CTI.
   Mas o Filho não descansou, precisava levar Nova ao cinema, depois quem sabe uma esticadinha. Mas o pai Invejoso, que de tanto era, cuidava até a roupa de Nova.
   — Filho, a saia da Nova tá parecendo de mulher de hora. Te alerta Filho!
Filho saiu com Nova de ônibus. Pai Invejoso não emprestava carro semi, de jeito nenhum. Dizem que quando chegaram no cinema, a saia da Nova enganchou num preguinho, bem na bilheteria, sei lá porque tinha um preguinho na bilheteria, mas tinha. Caiu a saia dela. Foi um escândalo. Calcinha bege gigante. Filho se decepcionou, achou que ia no motel, mas a moça parecia que vestia um escafândro. Nem apagando todas as luzes e me concentrando um monte, conseguiria dar o show.
   Filho voltou para casa. Se sentiu na CTI que nem seu fusquinha. O pai Invejoso achou graça, mas nunca soube da calcinha de Nova. Filho sentiu saudades da mãe, mulher forte, mas nem tanto, não aguentou mais que treze anos com Invejoso e logo tratou de ver Deus antes do tempo.
   Invejoso não parou por aí. Ligou para Nova dizendo que o filho não a queria mais. Invejoso, com a idade, no alto de seus setenta anos, passou também a ser intriguento. Aprendera desde cedo, lá na fronteira, que o cara deveria invejar o país vizinho e fazer intriga dos parentes. Aos dez anos, Invejoso conseguiu grande feito, começou a invejar também seu próprio país e fazer intrigas dos parentes de Martha, seu primeiro encanto. Mas que Invejoso também já destilava:
   — Martha, seu cabelo hoje tá meio pastoso.
   Invejoso tinha meio cabelo, desde criança, esticava os tufos de uma das metades com toda a força e..., ufa, cobria o resto. Se a pessoa tinha muita barriga, parecia baleia, se tinha pouca, lambari. E Invejoso assim foi se criando, maldizendo e olhando o mundo como se estivesse em caricatura.
   Mais uma manhã quente, e de novo os amigos de bar do Filho, Roberto, Beto e Betão, homens de luta ilegal, muito fortes mesmo e o fusquinha roncava. Invejoso ria do filho, mas só quando os três voltavam para o bar, vá que eles ouvissem.
   Além de invejoso e intriguento, agora ele era também cauteloso. Coisa da velhice. Tudo pelas costas, falava, mas baixinho.Voz grave mas bem cuidada.
   Filho conseguiu emprego novo e reatou com Nova, queria comemorar mas não podia contar para o pai. Dois anos e conseguiu promoção, garoto esforçado e trabalhador, devorava livros de informática. Esperto, falava palavras técnicas com perfeição em contexto qualquer, quando avistava o chefe. Subiu dois andares, do oitavo passou para o décimo. No onze, as salas da diretoria.
   Mas Invejoso ficou triste pela primeira vez em setenta anos de insistência. Filho seguia com o Fusquinha, estava desempregado e namorava a mais feia da vila, no currículo da moça uma linha: sabe ler e escrever.
   Filho, além de trabalhador, esperto e inteligente, passou a ter mais trabalho ainda, mas valia a pena. Depois do empurrão dos amigos, todas as manhãs quentes, andava quatro quadras com o Fusquinha e a Feia, largava no estacionamento do Zé. A Feia também ficava por lá, cuidava da entrada e saída dos carros e era irmã do Zé. Emprestada para parecer namorada-noiva, rendia bons trocos. Agora o estacionamento tinha luminoso novo e tudo. Filho estacionava com carinho o fusquinha, até beijinho dava, depois entrava num carrão, parece que era um que tinha um leãozinho na frente, de qualquer forma, com o sem leão o carro arrancava até em segunda marcha. E ainda se via os cabelos loiros e cacheados de Filho voando pelo teto solar.

5 comentários:

  1. Mais uma vez tenho de tirar o chapéu pr'essa mulher! Humor sútil... ao estilo inglês... Coisa de gente inteligente!

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  2. A Ana Cecília tem uma narrativa envolvente, capaz de transportar o leitor suavemente para o próprio conto, com humor inteligente e levemente sarcástico. Cada conto que conta, mais me encanta.

    Sucesso!

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Estou gostando deste blog!! Parabéns...gostei também.. do EFEITO BLOG!!! BJS

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  5. Cissinha,

    eu me rendo: até meu fusquinha 72 tá melhorzinho ( só um pouco!) do que o seu. Eu pensei que fosse um radinho hahahaha

    Calcinha bege gigante lembra as nossas mães. Pergunte a qualquer homem o que mais "tira" o entusiasmo "naquela hora". É a calcinha bege rsrs E já teve até enquete sobre isso em revista, creia!

    E na véspera do dia 12 de Junho vou reduzir minha lista de exigências para a única linha: "saber ler e escrever". Tá bão! rsrs

    Bem legal o conto! :D

    Como é que eu passei 2010 sem descobrir o HumorEmConto? Hunf! Que coisa!

    Beijinho!

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