terça-feira, 23 de novembro de 2010

A Ordem dos Adoradores de Poodle

   Ao lado de meu apartamento, era o de número duzentos e dois, onde morava o senhor Motta. Nunca soube seu primeiro nome, muitos menos em que trabalhava. Talvez todos os grandes mistérios da humanidade seriam desvendados antes disso. Quem matou o Kennedy? O homem pisou mesmo na lua? Quando será o fim do mundo? Mas nas conversas de corredor, quando a tal pergunta era feita, em que ele trabalhava, seu Motta coçava a sobrancelha. Com tal perícia, me confundia falando coisa trás outra. Eu, esquecendo do assunto e mais uma vez ele se escapando.
   Era abril, época da declaração de imposto de renda. Preferi fechar o escritório e concluir o serviço em casa. Ainda era de tarde, quando cheguei. Coloquei a pasta sobre a mesa e tentei continuar meu trabalho. De longe ouvi um "uan" "uan". Vinha do apartamento do Motta. Alguns "uans" a mais e não resisti, saí corredor afora. Quando cheguei perto da porta do Motta, ele a abriu com força. Todo vestido de preto e com a cara franzida, como se brabo estivesse, não disse nada. Dei um risinho e voltei para casa.
   Coloquei um copo na parede para tentar ouvir mais alguma coisa. Mas os sons estavam misturados, parecia que alguém estava se sufocando. Assustado e extremamente curioso, passei a vir todos os dias mais cedo para casa. Percebi que metódicamente, duas vezes por semana, nas terças e quintas se ouvia os "uans". Sempre das cinco às seis da tarde. Nestes dias, sempre que saía para o corredor, parece que seu Motta percebia e vinha a meu encontro, vestido de preto, todas essas vezes.
   Depois de duas semanas, e após três insistências da Ana que eu não o fizesse, toquei a campainha do Motta na última quinta-feira do mês. Isso já tinha ultrapassado minha tolerância. Exigia explicações. O Motta abriu somente uns dez centímetros da porta. Um cheiro forte de incenso percorreu minhas narinas sensíveis. Um espirro meu introduziu a conversa.
   — Seu Motta, desculpe incomodar, mas o senhor não ouviu uns "uans"? — disse arqueando as sobrancelhas
   — Uns o quê? — respondeu em voz alta
   — É o seguinte seu Motta. É que eu tenho ouvido uns tais "uans" todas as terças e quintas à tarde.
   — Acho melhor o senhor procurar um psiquiatra, sem ofendê-lo. Mas essa coisa de vozes...
   — Não, o senhor não está entendendo — a sua fala foi interrompida
   — Não, o senhor é que não está entendendo, o que eu tenho que ver com seus, os seus, o quê mesmo? — disse seu Motta indignado
   — O problema é que meus "uans" vem de seu apartamento — disse rápido, com o rosto todo vermelho
   — Chiiiiiii — colocou o dedo entre os lábios
   — Chiiii, o quê?
   — Não fala nada para seu Abílio, não quero incomodação com o síndico. Mas dá para ouvir os latidos? — disse preocupado
   — Não. Se ouvem os tais "uans".
   — Chiiii. Os seus "uans" são os meus latidos.
   — O senhor late? Depois eu é que ouço vozes — disse encisivo.
   — Não é isso — disse Motta me puxando pelo braço — entra aqui.
   — Eu não — disse alto — eu vou é chamar o síndico, a mulher o síndico, até o cachorro do síndico para saber o que está acontecendo.
   — O cachorro do síndico não precisa não, ele já está aqui no meu apartamento — disse me puxando novamente para dentro
   Quando menos esperava, já estava dentro do apartamento. Os "uans" ficaram mais altos. Seu Motta me conduziu a um quartinho nos fundos e abriu a porta. A lembrança da comida da mamãe me veio à memória: o arroz grudado e o feijão aguado com cheiro de cigarro. Nada mais, nada menos que uns trinta poodles, num espaço de dois metros quadrados. Me explicou que pertencia a uma tal de Ordem dos Adoradores de Poodle, que recolhia os cachorros da vizinhança e recebia seus amigos para uma tal cerimônia. Dei uma risadinha e sai correndo dali.
   Eu ainda estava no corredor, quando seu Motta veio e me pediu silêncio a respeito. Que o síndico já sabia e também participava da Ordem. Até o porteiro fazia parte, mas ninguém que não participasse poderia saber, para evitar comentários maldosos e blá, blá, blá.
   Disse que iria respeitar a decisão, mas ele só teria que me responder a uma pequena pergunta. Seu Motta olhou de soslaio e me falou que se fosse somente isto: — Por que não?
   Me preparei todo, estiquei a coluna e pensei, é agora.
   — Seu Motta, é o seguinte...
   — Fala rapaz — disse baixinho — tenho que voltar para os meus poodles
   — Não se ofenda com a minha pergunta.
  — Rapaz, é o seguinte, daqui a pouco o pessoal estará chegando para a cerimônia.
   — Seu Motta — me estiquei novamente e engrossei a voz
   — Fala rapaz!
   — Afinal, quem matou o Kennedy?

4 comentários:

  1. Sem dúvida é o que eu mais gosto... pelo menos por enquanto! rsssss

    ResponderExcluir
  2. De um humor despretensioso, que nos faz acompanhar com prazer o conto.Muito bom!

    ResponderExcluir
  3. Seu Motta precisa de um analista urgentemente...
    ahha
    Abraço

    ResponderExcluir